Detectar um novo agente epidêmico não é trivial. Quando vejo críticas à velocidade da China em detectar e informar o mundo sobre o coronavírus, eu logo penso: e se fosse no Brasil? Estamos preparados para detectar um novo agente?
O vírus HIV circulou por mais de 50 anos na África antes de adquirir capacidade de transmissão de forma eficiente entre humanos e chegar às Américas, em 1977. A síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids) foi detectada nos EUA em 1981. Demoraram outros dois anos para que o HIV fosse descoberto, e um ano para testes sorológicos estarem disponíveis.
A ciência teve enorme avanço nos últimos 40 anos. Desde o mapeamento do genoma humano, em 2000, as técnicas de sequenciamento evoluíram de forma impressionante, e os custos baixaram em escala logarítmica. Em 2014, na epidemia de ebola na África, tentou-se pela primeira vez usar técnicas de análise para descrever a dispersão do vírus durante o surto. Os pesquisadores brasileiros empregaram tais métodos quando eclodiu o surto de zika, em 2015.
O Instituto de Medicina Tropical (IMT), da Universidade de São Paulo, em conjunto com a Fundação Oswaldo Cruz, da Bahia, iniciou em 2016 uma cooperação entre pesquisadores brasileiros e britânicos na qual sequenciamos 54 genomas do vírus obtidos de pacientes de todo o Brasil. Descobrimos que o zika já circulava no país pelo menos um ano antes da primeira descrição, feita na Bahia em 2015.
A partir da experiência com o zika, o passo seguinte foi fazermos com que a tecnologia de análise adquirida pudesse ser usada por mais grupos e pelas instituições responsáveis pela vigilância epidemiológica.
Por isso, em 2019, iniciamos o projeto Cadde (Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus). Apoiado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e pelo governo britânico, o projeto objetiva estudar em tempo real epidemias como dengue e zika. O grupo inclui o IMT, a Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (SP) e a Secretaria da Saúde de São Paulo (Instituto Adolfo Lutz, Centro de Vigilância Epidemiológica e Sucen), as universidades britânicas de Oxford e de Birmingham, e a London School of Hygiene and Tropical Medicine.
Em 2019, trabalhamos os dados da epidemia de febre amarela. Neste ano, começávamos a monitorar em tempo real a epidemia de dengue quando fomos atropelados pelo coronavírus. Graças ao esforço pregresso, sequenciar rapidamente este novo agente foi mais fácil. O Adolfo Lutz recebeu amostras do primeiro caso confirmado no Brasil em 26 de fevereiro e completou o sequenciamento em 48 horas —o mesmo tempo levado por uma instituição de renome internacional como o Instituto Pasteur de Paris.
Nós só conseguimos fazer isso graças a um apoio contínuo da Fapesp. Mas precisamos chamar a atenção a problemas estruturais importantes. No Brasil, por exemplo, dispomos de laboratórios de biossegurança até o nível 3, projetados para confinar vírus de elevado risco como HIV e febre amarela. Ainda não dispomos de um laboratório nível 4, de segurança máxima, projetado para a contenção de agentes de altíssimo risco, como o vírus ebola. E vírus parecidos não faltam no nosso meio ambiente. Por exemplo, o vírus Sabiá, que não se via há mais de 20 anos em São Paulo, foi detectado em janeiro num paciente que foi a óbito no Hospital das Clínicas.
Como podemos estudar este agente sem laboratório nível 4? E se ocorrer alguma mutação que o torne mais transmissível para humanos como acabou de acontecer com a covid-19? O Estado de São Paulo tem 44 milhões de habitantes, não podemos continuar sem um laboratório nível 4.
Eu adoraria dizer que a epidemia de covid-19 será controlada rapidamente. Mas o fato de alguns países como a Itália terem demorado para detectar o vírus indica que contê-lo parece cada vez mais difícil. A covid-19 já circula em mais de 50 países nos seis continentes. O custo de uma epidemia é enorme. Pesquisas nesta área não podem parar.