Bruna Della Torre entrevista Susan Buck-Morss, pioneira nos estudos da Escola de Frankfurt e uma das maiores representantes, continuadoras e alargadoras da teoria crítica no presente.
Por Bruna Della Torre
Susan Buck-Morss é professora de Ciência Política na CUNY Graduate Center e professora emérita na Universidade de Cornell, nos Estados unidos. Além de pioneira nos estudos da Escola de Frankfurt, especialmente, das obras de Walter Benjamin e Theodor W. Adorno, Buck-Morss é uma das maiores representantes, continuadoras e alargadoras da teoria crítica no presente. Ela é autora de Year one: a philosophical recounting (2021), Revolution today (2019), Hegel, Haiti, and Universal History (2009), pelo qual ganhou o prêmio Frantz Fanon, Thinking Past Terror: Islamism and Critical Theory on the Left (2003), Dreamworld and Catastrophe: The Passing of Mass Utopia in East and West (2000), The Dialectics of Seeing: Walter Benjamin and the Arcades Project (1991), The Origin of Negative Dialectics: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin, and the Frankfurt Institute (1977). Alguns de seus livros, como Dialética do Olhar, O presente do passado, Mundo de sonho e catástrofe e Hegel e o Haiti, foram traduzidos para o português.
Bruna Della Torre: Eu gostaria de começar com uma pergunta a respeito de sua trajetória. Você foi uma das primeiras especialistas na Escola de Frankfurt nos Estados Unidos (e em outros lugares do mundo). Por que a teoria crítica? Como você entrou em contato com o trabalho desses autores, especialmente Adorno? Como foi ser uma pesquisadora numa área que permanece até hoje predominantemente masculina? Basta pensar como o Instituto de Pesquisa Social nunca teve uma diretora. Você poderia falar um pouco da sua experiência como mulher e como marxista tendo em vista que, especialmente na Alemanha, a teoria crítica ainda não é reconhecida como uma vertente do marxismo?
Susan Buck-Morss: Uma grande questão! Há um traço comum que pode vincular esses diversos aspectos, que é a decisão de se tornar um tipo de intelectual que, como mulher, não se esperava que eu me tornasse. A trajetória aguardada de uma mulher que se formava em Yale era o casamento – “uma aliança antes da primavera” [a ring before spring]. No meu caso, isso não aconteceu. Em seguida, como bolsista Fullbright, eu não planejava estudar Marx ou a Escola de Frankfurt, mas quando os estudantes entraram em greve, esses autores se tornaram leituras obrigatórias. Os escritos de juventude de Marx sobre o trabalho alienado me tocavam diretamente, uma vez que eu tive que realizar muitos trabalhos alienados para ganhar dinheiro. O trabalho da Escola de Frankfurt era multidisciplinar; combinava Marx e Freud para analisar a sociedade. Essa abordagem fazia sentido para mim. Eu aprendi cedo (a psicanálise ajudou!) que o percurso designado para mim pela sociedade não era o que eu queria. Meus desejos iam de encontro às expectativas dos outros e eu aceitei a solidão e, às vezes, os maus tratos que isso implicava. Isso tornou o apoio dos coletivos feministas, e de outras amigas ao longo desse caminho, incomensurável.
BDT: A relação da Escola de Frankfurt com o feminismo e com as mulheres é complicada. As mulheres sempre ocuparam um lugar secundário em seus projetos e não aparecem em muitos dos livros que contam a história do Instituto. Isso estava mudando na década de 1960 com mulheres como Helge Pross, que dava aula no Instituto, e com Regina-Becker-Schmidt e Elisabeth Lenk, que eram orientandas de Adorno. É possível mencionar também os nomes de Angela Davis ou até mesmo de Gretel, que auxiliou Adorno em sua correspondência, em vários de seus livros, na organização das obras de Benjamin. Apesar disso, mesmo hoje, essas e outras mulheres não são consideradas parte da segunda geração da Escola de Frankfurt. Para além da invisibilização do trabalho e da participação das mulheres no Instituto, é possível dizer que a ausência de mulheres teve um custo alto também do ponto de vista teórico. Claro que muitas dessas coisas estão ligadas ao contexto, mas creio que não se pode derivar todos esses problemas disso. Eles leram Sartre, podiam muito bem ter lido Simone de Beauvoir. O que você pensa sobre isso?
SBM: Você está correta nas suas observações. Na década de 1970, quando eu estava em Frankfurt, Regina-Becker Schmidt era uma líder do movimento estudantil. Adorno tinha morrido, mas sua esposa Gretel ainda estava viva e, quando eu estava escrevendo minha tese sobre Adorno e Benjamin, eu a visitei em seu escritório. Ela era bastante assustadora. Ela tinha uma perna quebrada, que estava engessada e pendurada em sua mesa. Fumava como uma chaminé. Ela me pareceu amargurada por seu papel auxiliar vis-a-vis Teddy. Ela datilografou seus manuscritos, é claro. Ele precisava disso. Mas não acredito que ele jamais tenha reconhecido seu papel como interlocutora [Gesprächspartner], que ela certamente era. Na Escola de Frankfurt, há rumores de que muitos dos homens eram mulherengos. Fico contente de não tê-los conhecido. Jürgen Habermas era totalmente diferente e foi o seu seminário que frequentei em Frankfurt. Ele tratava as mulheres com muito respeito. Quando, mais tarde, eu dei uma palestra em seu seminário sobre o Passagenwerk, ele expressou admiração pela minha ideia de “coordenadas” como um esquema do pensamento de Benjamin. Ele me citou nas notas de rodapé de seus próprios escritos. Acredito que outras mulheres da minha geração que permaneceram mais próximas ao Instituto se beneficiaram do respeito que Habermas dedicou a nós e ao nosso trabalho.
BDT: Em vários de seus trabalhos, você combina teoria crítica e uma abordagem feminista nos assuntos mais inesperados. Por exemplo, quando você diz que Benjamin resgata a sensibilidade e o corpo de uma concepção estética que havia previamente os expulsado. Isso teria a ver, conforme você discute, com uma abordagem kantiana e masculinista, que nega a sexualidade, especialmente a sexualidade das mulheres e, por isso, visa de certo modo esterilizar a estética das sensações. Você mostra que a caça as bruxas, que esteve nos Grundrisse do capitalismo teve suas consequências também na esfera da arte e da filosofia. Como você acha que a teoria crítica pode contribuir com os estudos do feminismo hoje?
SBM: Quando o feminismo se tornou uma abordagem respeitável e, de fato, necessária, meus colegas em Cornell acharam que, como teórica e como mulher, eu tinha competência para ensinar teoria feminista. Mas eu não havia sido treinada para isso, nem era esse meu interesse de pesquisa. Por outro lado, sempre foi muito claro para mim que o pensamento centrado no homem distorceu a filosofia. Você não pode pensar com clareza quando a supressão de gênero torna seu argumento enviesado. É como o pensamento racista, como tentar teorizar sobre o capitalismo sem levar em conta a escravidão nas plantations como sua pedra de toque. Você vai errar a teoria. A teoria crítica não pode funcionar hoje se não reconhecer isso. Então, em certo sentido, tudo que escrevi é feminista e marxista. Eu também gostaria de ressaltar que meu trabalho sempre foi mais profundamente influenciado por Walter Benjamin, uma figura marginal no Instituto de Pesquisa Social. Benjamin pode não ter encampado o feminismo como uma posição política e pode ser que tenha sido menos marxista do que a forma como o interpretei, mas seu método é não-autoritário, não-masculinista e não-dogmático de uma forma única. Isso deixa o pensamento vulnerável, aberto ao uso compartilhado e à apropriação criativa.
Susan Buck-Morss
BDT: Você viajou à União Soviética antes da queda do muro de Berlim para discutir teoria. No seu livro, Mundo de sonho e catástrofe, você menciona que nos anos 1980, os intelectuais lá estavam interessados em discutir teoria crítica e pós-modernismo, mas não Marx. O que aconteceu?
SBM: A minha primeira viagem à União Soviética foi em 1987. Fui como esposa de meu marido físico, que havia sido convidado pelo Instituto Landau. Eu descobri colegas em Moscou que estavam lendo Adorno e Benjamin (e meu livro sobre Adorno!) no Instituto de Filosofia. Depois disso, voltei para lá inúmeras vezes sozinha ao longo dos anos da transição que deixou para trás a União Soviética. Finalmente, eu ensinei a crítica do Capital, de Marx, aos estudantes de Moscou, uma vez que eles agora estavam expostos ao capitalismo e à sociedade das mercadorias pela primeira vez. Essa experiência, como as de meus anos de estudante, me ensinou que os projetos mais interessantes surgem da vida política real, mais que das tradições das disciplinas acadêmicas. Isso significa que ao invés de construir sua pesquisa para se manter a par de tendências acadêmicas atuais, você escreve sobre o que experimenta como verdadeiro.
BDT: Seu livro sobre Hegel e o Haiti, também cobre um aspecto que faltava na Escola de Frankfurt (talvez menos em Marcuse), que é uma avaliação sistêmica das relações capitalistas entre os chamados norte e sul globais. Você mostra que a revolução haitiana inspirou a dialética entre senhor e escravo de Hegel. Você pode comentar um pouco essa questão? Como você começou a estudar isso e como foi a recepção na Alemanha de seu livro?
SBM: Eu estava em Berlim quando as palestras inéditas de Jena vieram à público. Nelas, eu notei que Hegel começou a falar sobre mestres e escravos em 1805, o mesmo ano que a revolução que aboliu a escravidão se completou no Haiti. Achei essa coincidência muito intrigante. Então, eu indaguei os especialistas em Hegel sobre uma possível conexão e eles não se interessaram. Eu trabalhei quase uma década em diversas bibliotecas e arquivos para encontrar evidência significativa de que Hegel conhecia bem a Revolução Haitiana e que isso foi importante para o jovem filósofo – que era pobre, desempregado e acabara de ter um filho com a esposa de seu senhorio. Mas claro que a resposta acadêmica padrão foi que isso não mudaria o modo como especialistas ensinam Hegel. E eu me dei conta que a utilidade de minha pesquisa residiria em outro lugar; e não na academia, dentre os especialistas de Hegel.
BDT: Com a ascensão de vários movimentos de extrema-direita, uma das principais questões do debate político atual é o dilema – falso, a meu ver – entre universalismo e identitarismo. Judith Butler, por exemplo, também influenciada por Benjamin e Adorno, discute gênero e sexualidade e defende uma aliança entre diferentes grupos que engendre uma luta conjunta contra o capitalismo. Outras feministas marxistas, como Tithi Bhattacharya, por exemplo, discutem a teoria da reprodução social e defendem uma abordagem mais unitária. Essa visão explica como as muitas opressões estão conectadas e relacionadas ao capitalismo. Angela Davis defende um feminismo que pode ir além de um conceito de gênero e pode ser uma espécie de consciência sobre o capitalismo. Há também a abordagem interseccional em suas muitas facetas. Como você se relaciona com essas teorias? Que tipo de universalismo devemos defender, um de aliança, um unitário? Ou devemos abandonar essa ideia?
SBM: Eu respeito todos esses trabalhos. E eu me beneficio dos trabalhos de todas essas autoras, mesmo que minhas contribuições não se dirijam diretamente a esses debates. Se você me perguntar: qual é a sua posição no que se refere à relação entre capitalismo e feminismo? Minha resposta é, com certeza, enxergar as conexões e as alianças dos movimentos que essa análise exige. Mas eu não acho que a transcendência do capitalismo é uma tarefa que pode ser realizada por teóricos. A política identitária é igualmente problemática. Como todas as abordagens ontológicas, apesar de efetiva em termos de ganho de consciência, ela leva a um beco sem saída político. (Como podemos escapar ao nosso próprio “ser”?). Se realmente levamos a sério o abandono do ocidente-centrismo, com todas as suas implicações coloniais, racistas e antifeministas, então não podemos nos apoiar numa ideia de progresso embutida na ideia de revolução de Marx ou no socialismo centralizado no Estado que de fato teve lugar no experimento soviético. Vale resgatar a democracia – de maneira nenhuma uma invenção “ocidental” – dos destroços da modernidade e preenche-la com conteúdo concreto, como diria Adorno, para que a democracia realmente existente alcance seu próprio conceito. O fato de podermos fazer uma afirmação verdadeira a respeito de uma contradição – “A democracia ocidental não é democrática” – demonstra que a crítica imanente continua sendo uma ferramenta analítica inestimável.
BDT: Em seu último livro, Year one: a philosophical recounting, você argumenta que a diáspora não é uma cultura, mas uma condição que precisa de tradução. E o tradutor, você cita Walter Benjamin, é aquele que “trata as palavras como entradas”. Você mobiliza essa ideia de tradução, se entendi corretamente, para defender um novo tipo de universalismo, que também defende que “saltemos para fora da modernidade”. Você poderia dizer algo sobre isso? Você também se distancia da defesa de São Paulo feita por de Slavoj Žižek e Alain Badiou. Então, o que eu gostaria de perguntar é, como seu livro se relaciona com o momento político e filosófico em que vivemos?
SBM: Eu estou sorrindo, porque você está me pedindo para resumir um livro de 400 páginas que levei 10 anos para escrever. Como uma discussão resumida para uma discussão teórica corrente, esse livro não pode ter sucesso. Year 1 é um estudo que luta para tornar o material histórico significativo para a filosofia e para fazer isso de um jeito novo, precisamente abandonando o quadro epistemológico das identidades – seja “judaica”, “cristã”, ou “grega”. “Saltar para fora da modernidade” significa simplesmente nos libertar das disciplinas estabelecidas, passadas a nós pelos vencedores da história, que estão em consonância com o mau estado das coisas. A defesa de Žižek e Badiou de São Paulo como um pensador do universalismo não pode ser levada a sério quando justaposta à observação de Nancy Ambrose, uma escrava liberta do Sul dos EUA na época da Reconstrução, que não quis ouvir falar de Paulo, esse homem que escreveu: “Escravos, sejam obedientes a seus mestres” e que insistiu, ao invés disso, num “Deus no qual vale a pena acreditar”.
BDT: Em Year 1, você diz que “patriarcado” é um conceito muito abstrato para definir o que aconteceu com as mulheres no decorrer da história. Você poderia comentar mais isso?
SBM: A exploração das mulheres, de seu trabalho e de seu amor, não pode ser combatida como uma generalidade. Ela ocorre em constelações históricas específicas. As mulheres, como posses patriarcais, são o arquétipo [Urform] da escravidão humana. Mas a forma social precisa dessa relação varia historicamente e precisa ser entendida em sua particularidade, a cada vez, se queremos que essas constelações sejam dissolvidas.
BDT: Você critica, também em Year 1, as visões seculares do apocalipse presentes, por exemplo, na discussão da crise ambiental. Você diz que Martin Luther King entendeu o apocalipse como deve ser entendido, como um sinal de esperança. Existem muitas visões sobre o apocalipse secular na teoria crítica, como em Günther Anders, por exemplo. Habermas e muitos outros identificaram um aspecto apocalíptico também no pensamento de Adorno e Horkheimer. Como você vê a relação entre a Escola de Frankfurt, apocalipse e feminismo? Existe uma relação desse tipo?
SBM: Eu não posso trabalhar com “apocalipse e feminismo” em nível abstrato, embora outras pessoas o façam. Apocalipse, em seu sentido moderno, é uma invenção do meio do século XIX que teria sido uma impossibilidade conceitual para João, o Evangelista, que escreveu Apocalys (o livro da revelação) em torno de 96 DC. Apenas quem acredita na modernidade como um télos da história pode descrever o apocalipse como um sinal de nossos tempos, não importa quão secular seja sua compreensão. Claro, apesar de seu papel central em Year 1, eu não sou dona da palavra “apocalipse”, nem de seu uso. Eu só me contraponho a outros que pensam que podem fazer isso e o fazem.
BDT: Essa entrevista foi feita tendo em vista as comemorações e debates ligados ao 8 de março. Quais são os principais desafios para uma perspectiva, como a sua, que visa conjugar marxismo, feminismo e teoria crítica atualmente?
SBM: Estamos num momento histórico difícil, mas também cheio de esperança, fomentado por nossas compreensões teórico-críticas. Nós temos que imaginar a possibilidade de alianças e abordagens ainda mais novas. O movimento global de mulheres cumpre um papel decisivo nisso. Nós precisamos NÃO retornar à “vida normal”, na qual a violência social, as guerras brutais e as catástrofes ambientais são de fato a norma. A nossa tarefa é enorme, dada a confusão criada pelo “desenvolvimento” como um projeto industrial global. É possível que os seres humanos não tenham sucesso nessa tarefa. Essa possibilidade real deveria, sobretudo, nos tornar humildes. Humildade, combinada com coragem, é o significado da esperança e é por isso que a prática do reverendo Martin Luther King Jr., permanece uma inspiração.
Leia também os artigos As frankfurtianas: Regina Becker-Schmidt e a teoria crítica feminista e Theodor W. Adorno e Elisabeth Lenk, uma correspondência, de Bruna Della Torre, ambos sobra as mulheres da Escola de Frankfurt.
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Confira a mesa Por que o marxismo precisa ser feminista?, com Virgínia Fontes, Bruna Della Torre e Giovanna Marcelino (mediação), que fez parte da programação do #8M da Boitempo:
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Bruna Della Torre é pesquisadora do Centro Käte Hamburger para estudos apocalípticos e pós-apocalípticos da Universidade de Heidelberg e pós-doutoranda no Departamento de Sociologia da Unicamp (bolsista Fapesp), onde estuda teoria crítica, indústria cultural e agitação fascista no Brasil. Editora executiva da revista Crítica Marxista, pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social (Labemus) e membra da coletiva Marxismo Feminista. Realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, doutorado em Sociologia, ambos com apoio da Capes, e mestrado em Antropologia com apoio da Fapesp, todos na Universidade de São Paulo. Durante o doutorado, foi pesquisadora visitante na universidade Goethe, na Alemanha, com apoio do DAAD, e na universidade Duke, nos Estados Unidos, com apoio da Capes. Durante o pós-doutorado, realizou um estágio de pesquisa na universidade Humboldt e no arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno na Akademie der Künste em Berlim com apoio do DAAD. Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente.