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Gazeta Mercantil

As falhas do reprocessamento do urânio (1 notícias)

Publicado em 19 de abril de 1996

Por David Lascelles - Financial Times
Dentro do complexo de combustível nuclear de Sellafield, no noroeste da Inglaterra, existe uma câmara com paredes maciças de concreto que contém uma massa verde lamacenta. É uma solução para tratar o nitrato de plutônio, um subproduto letal das usinas de energia nuclear. Esse não é apenas um veneno no sentido comum, porque contém material radiativo suficiente para criar uma explosão nuclear, na eventualidade de ficar concentrado demais. Isso quase aconteceu em setembro de 1992. Um defeito em uma emenda soldada dentro da câmara liberou 30 litros do material, que se espalhou pelo chão e paredes. O material se acumulava em montinhos, perigosamente perto da quantidade que resultaria em uma reação nuclear em cadeia, parecida com a que ocorre quando dois torrões de plutônio são reunidos em uma bomba nuclear. O material tinha de ser recolhido com extrema urgência, antes que pudesse se juntar em quantidade maior. Mas era tão radiativo que, mesmo com roupas de proteção, os trabalhadores não podiam entrar na câmara por mais de alguns minutos de cada vez. Com grande coragem, os trabalhadores removeram os montinhos em uma seqüência cuidadosamente estudada para evitar criarem uma forma que pudesse provocar sua explosão. Se a fábrica estivesse tratando plutônio de qualidade militar, e não o tipo menos concentrado usado por usinas nucleares, uma terrível explosão quase certamente teria ocorrido. Esse incidente assustador - para não falar de outros que tornaram Sellafield notório - parece suficiente para justificar seu título de área industrial mais temida e odiada da Inglaterra. Os detalhes foram divulgados ao público em um novo e notável livro sobre a usina, escrito por um ex-diretor da British Nuclear Fuels Ltd. (BNFL), a empresa que opera a usina. O autor é Harold Bolter, ex-editor de indústria do jornal Financial Times, que se tornou o diretor da BNFL com mais tempo de permanência no conselho de administração, com responsabilidade por segurança e prevenção, entre outras coisas. Embora muitos dos incidentes descritos por Bolter sejam, agora, de domínio público, seu relato é a primeira visão do sigiloso mundo de reprocessamento nuclear divulgado por alguém de dentro, o que lança uma luz tristemente fascinante sobre a vindoura privatização da indústria de energia nuclear britânica. O décimo aniversário, neste mês, do desastre nuclear em Chernobyl, na Ucrânia, focalizará a atenção do mundo, mais uma vez, na segurança das usinas nucleares. Mas um problema bem maior para a indústria nuclear é a fase final do ciclo: o combustível usado, o lixo radiativo, a desativação das usinas. Tudo isso tem a ver com Sellafield. Estes continuam sendo enormes problemas para a indústria nuclear de todos os países, mesmo a mais segura. Não podem ser postos de lado, como se fez no caso de Chernobyl, com a reação simplista "não poderia acontecer aqui". A energia nuclear pode ter suas vantagens: não gasta combustíveis fósseis, não faz fumaça, não emite gases de efeito estufa. Mas será que essas vantagens compensam a sujeira que ela deixa atrás, ou os enormes riscos financeiros quando o custo de cada usina é medido em bilhões e as incertezas sobre a segurança podem dobrar o preço? Bolter é um daqueles que pensam que precisamos de energia nuclear porque tudo o resto se esgotará no futuro. Ele também acredita que Sellafield e a BNFL conseguiram feitos impressionantes e merecem ter êxito. Desse modo, é especialmente preocupante descobrir que ele tem dúvidas sérias sobre os aspectos cruciais da política nuclear britânica: a viabilidade econômica de se reprocessar o combustível nuclear usado, a decisão de privatizar e as perguntas não respondidas sobre o destino final do lixo atômico. Devido à sua experiência, Bolter deve ser levado a sério, embora tenha sido forçado a se demitir da BNFL em 1993, depois de alegações - das quais um inquérito policial o isentou posteriormente - de que ele usou empresas fornecedoras da empresa para redecorar sua residência. A primeira do mundo A energia nuclear é tão mal vista, hoje, que é difícil recordar-se da enorme confiança de quase quarenta anos atrás, quando a jovem rainha Elizabeth foi a Sellafield para inaugurar Calder Hall, a primeira usina de energia nuclear do mundo ligada à rede elétrica. O acontecimento foi considerado prova de que a Inglaterra ainda se encontrava na vanguarda da tecnologia mundial. A energia nuclear forneceria energia ilimitada de baixo custo - e ainda produziria um subproduto útil na forma de plutônio para a bomba H britânica, para assegurar a permanência do país no clube das grandes potências. Naqueles tempos, o problema de lidar com o lixo atômico parecia distante e pequeno. A função inicial de Sellafield era produzir combustível nuclear e recuperar o plutônio depois, sem se preocupar com o lixo atômico. Mas a atitude de seus primeiros diretores, com o que Bolter chama de sua "cultura de sociedade secreta" e "virilidade científica", lançou as sementes para as enormes dificuldades de relações públicas que nunca mais deixaram de afligir Sellafield. Pouco depois da inauguração da usina, em 1957, um dos dois reatores nucleares do complexo foi destruído num incêndio. Foi o pior acidente nuclear da Europa até Chernobyl. A usina estava tão mal-equipada para lidar com o desastre que os voluntários, sem roupas protetoras, tinham de usar canos de andaime para manusear componentes em brasa, altamente radiativos, do reator. Ninguém teve a idéia de alertar a população local, e as crianças brincavam alegremente ao ar livre enquanto a contaminação radiativa espalhava-se pela atmosfera. Não existia nenhum plano de deslocar a população em caso de emergência, nem sequer nenhuma estrada que permitisse esse deslocamento rápido (como ainda não existe, até hoje). Os dirigentes dos serviços públicos de Sellafield acharam que era "uma pequena dificuldade local" sem conseqüências mais amplas. Mal compreendiam os enormes temores públicos que os acidentes nucleares viriam a provocar, futuramente. Embora ninguém tenha sido morto diretamente, acreditou-se, tempos depois, que o acidente cansara cem casos de câncer na Inglaterra. Com o passar do tempo, a BNFL ficou ainda mais isolada do público britânico. Quando, na década de 1970, explorou sua capacidade de reprocessar combustível usado de clientes estrangeiros, a empresa foi classificada pelo jornal Daily Mirror de "a lata de lixo nuclear do mundo". A acusação foi um susto terrível para os diretores da empresa, que imaginavam estarem realizando um trabalho esplêndido, ganhando divisas valiosas para o país. O choque terminou levando a uma política de maior abertura, em grande parte por instigação de Bolter, embora seja duvidoso que a hostilidade pública tenha diminuído. Seu livro mostra os motivos. Um deles é que Sellafield não conseguiu convencer as pessoas de que seja capaz de operar sem problemas. Bolter relata uma assustadora sucessão de incidentes. Em torno da usina de Sellafield estão espalhadas velhas edificações e depósitos de detritos. Uma vez, Bolter e seus colegas diretores estavam visitando um tanque que continha 15 toneladas de combustível nuclear recuperado do incêndio de 1957 quando notaram que uma das paredes de contenção apresentava um abaulamento alarmante. Se a parede se rompesse, a contaminação poderia cobrir grande parte da área do complexo. Em outra ocasião, descobriu-se que um silo estava soltando água radiativa com uma vazão de 400 litros por dia, havia quanto tempo ninguém sabia. Logo depois, descobriu-se um vazamento de ácido radiativo em um edifício que se julgava estar fechado havia 21 anos. Esses incidentes são da década de 1970. Mais recentemente, em 1983, permitiu-se escapar um fluxo de detrito radiativo por uma tubulação submarina que conduz a descarga de Sellafield para as acuas do mar da Irlanda, a uma distância de mais de um quilômetro do litoral. Essa descoberta levou à proibição de uso das praias locais e do consumo de peixe da região. Embora tudo tenha retornado, oficialmente, ao normal seis meses depois, o turismo local do condado de Cumbria ainda está sentindo os efeitos. Sucedem-se os incidentes. Ao comprimir um período de quarenta anos em um único livro, Bolter torna Sellafield aparentemente muito pior do que é. Mas o número e a gravidade dos acidentes provavelmente pouco importam para a percepção pública do local. E a preocupação pública se traduz, inexoravelmente, em custos mais altos. Essa é a origem das dificuldades da indústria nuclear no mundo inteiro, especialmente nos Estados Unidos. Não importa quantos milhões são gastos depois de cada incidente, muita gente permanece desconfiada. Nova usina Para ilustrar esse ponto, Bolter relata o caso de um anúncio da BNFL destinado a mostrar que as descargas radiativas haviam sido reduzidas a uma pequena proporção de seu volume anterior. O tiro saiu pela culatra: longe de perceber o fato uma realização, o público ficou irado por saber que Sellafield ainda estava despejando efluentes radiativos, por menor que fosse o volume. Muita gente continua hostil porque julgam que Sellafield, como os gigantescos riscos associados à usina, é, em grande medida, desnecessário - especialmente a recém-inaugurada usina Thorp, que reprocessa o combustível de reatores de gerações posteriores. A Thorp foi projetada em 1976, numa época de escassez de urânio em que o reprocessamento prometia recuperar grandes quantidades de urânio do combustível usado - bem como o plutônio, de que se precisava para sustentar a Guerra Fria. O potencial para os contratos estrangeiros também era grande. Hoje, Thorp já entrou em operação, a um custo de US$ 4,3 bilhões. Mas Bolter, apesar de ter conduzido uma longa e dura campanha para que a usina fosse aprovada, duvida, agora, de que o investimento chegue um dia a se tornar rentável. O urânio existe agora em abundância, ninguém mais quer o plutônio e muitos dos clientes originais deixaram de renovar seus contratos. O potencial de receita de divisas estrangeiras foi citado, tanto pela BNFL quanto pelo governo, como uma forte justificativa para a implantação da usina de Thorp. Mesmo que se ponha fé nas previsões de lucro - e Bolter duvida da solidez dos contratos em que se baseiam essas previsões -, essa linha de argumentação teve pouca repercussão na opinião pública. Qualquer perspectiva de lucro tende a ser anulada pelas preocupações - de ordem ética, de segurança ou de outra natureza -, em torno da decisão de receber o lixo nuclear de terceiros. Sem destino final Na visão de Bolter, o governo britânico montou uma farsa em torno de Sellafield para encobrir toda a fase final do ciclo da energia nuclear. Não somente a Grã-Bretanha encontra-se, agora, comprometida com uma capacidade de reprocessamento dispendioso e provavelmente indesejado, como fez uma mixórdia dos arranjos para a disposição final do lixo radiativo resultante. A British Energy está sendo privatizada sem dispor de repositórios finais, a não ser para os resíduos mais inofensivos, como o vestuário dos trabalhadores e alguns componentes ligeiramente contaminados. O material, verdadeiramente perigoso - o combustível usado, o plutônio que o governo já não quer, peças de reator altamente radiativas - não tem para onde ir, o que significa que Sellafield deverá se tornar o lixão dos detritos nucleares, por falta de alternativa. Perguntando quem pagará a conta da armazenagem segura desses detritos, Bolter descreve os planos como "um pesadelo organizacional". Parte do custo será cobrada da British Energy e de clientes estrangeiros. Mas a maior parte acabará na conta dos contribuintes britânicos. Por isso, os governos sempre querem adiar a data de vencimento, cada vez mais para o futuro - o que, significa que o problema dos detritos se estenderá por muito mais tempo do que o necessário. O governo atual já aprovou a ampliação do cronograma para a desativação das usinas nucleares de cem para 135 anos, no intuito de baixar o custo. É uma perspectiva inquietante: uma usina enormemente dispendiosa, da qual uma parte estaria em via de se tornar em um elefante branco e a outra, parte um buraco negro nuclear. Mas é um fato inegável que o lixo, atômico da Grã-Bretanha precisa ir para algum lugar, e talvez não haja melhor destino para ele do que Sellafield. A instalação tem a tecnologia e a capacidade para lidar com algumas das substâncias mais perigosas conhecidas pelo homem.