Notícia

Jornal da Unicamp online

As camponesas que dizem não aos transgênicos (1 notícias)

Publicado em 17 de outubro de 2014

Por Silvio Anunciação

Elas se autodescrevem como camponesas. São agricultoras, meeiras, sem-terra, boias-frias, assentadas, extrativistas... Em sua maioria, índias, negras e descendentes de europeus. Para a jornalista e pesquisadora da Unicamp Márcia Maria Tait Lima, que estudou este grupo de mulheres no Brasil e Argentina, as camponesas dos dois países são, hoje, protagonistas da luta contra o modelo de agricultura industrial, contra as sementes transgênicas e pela soberania alimentar na América Latina.

A intensidade do protagonismo, aliada à produção social dessas mulheres, sobretudo no Brasil, fez emergir, conforme a pesquisadora, uma nova “ética”, muito próxima do ecofeminismo, conceito que articula temas como gênero, meio ambiente e crítica a modelos de desenvolvimento e padrões tecnológicos. Os apontamentos da jornalista integram as conclusões de um estudo inédito e interdisciplinar desenvolvido por ela como parte de sua tese de doutorado defendida recentemente junto ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp.

“Diante dos impactos dos transgênicos e do modelo de agricultura imposto por estes alimentos, as mulheres camponesas se manifestam, propondo alternativas e tornando-se protagonistas nesta luta. Ou simplesmente não querendo aquela situação, rechaçando-a. Seja em movimentos mistos compostos por homens e mulheres ou em movimentos exclusivos de mulheres, estas camponesas estão na ponta de lança da crítica ao modelo de agricultura industrial e aos alimentos geneticamente modificados”, conclui Márcia Tait.

“A população do campo é a mais afetada pelas sementes transgênicas, uma derivação do pacote tecnológico. Apesar das controvérsias científicas, há um consenso de que nos últimos anos cresceu a utilização dos agroquímicos. E quem está na ponta desta contaminação são as pessoas que estão vivendo ali. Além do aspecto da saúde, há outros impactos, como a própria perda da terra, com um arrendamento para a monocultura, atividade intimamente ligada a este contexto”, completa.

No Brasil, o foco do estudo foi o Movimento das Mulheres Camponesas (MMC), que surgiu no Rio Grande do Sul e Santa Catarina e, atualmente, encontra-se disperso pelo país. O MMC foi criado em setembro de 2003 e está associado à Via Campesina Internacional, organização internacional de camponeses composta por movimentos sociais e organizações de todo o mundo.

Na Argentina, foram pesquisadas camponesas do nordeste (NEA) do país. A região – onde a maior parte de população vive no campo – apresenta os piores índices de desenvolvimento econômico e social da Argentina. Ao mesmo tempo, a atividade agrícola monocultura tem sido intensificada, gerando resistência das mulheres camponesas, que se dedicam à atividade de subsistência.

“Nos dois países, as mulheres, mais que os homens, têm uma preocupação maior com a saúde, com a família, com o alimento... Vários aspectos na construção social da mulher camponesa fazem com que ela se sensibilize mais por essas causas e continue lutando. Nas reuniões e encontros, a quantidade de mulheres é visivelmente superior. O homem, por uma alienação ou devido à necessidade relacionada a um papel social que ainda é muito forte no campo, que é o de prover e gerar a renda, acaba não se envolvendo. Às vezes, portanto, uma parcela masculina maior se acomoda se não há algum beneficio econômico imediato. E a mulher, não. Ela sempre está pensando: ‘pode trazer um benefício econômico, mas não é só isso que importa’”, acrescenta.

As principais lideranças entrevistadas por Márcia Tait, pertencentes ao MMC de Santa Catarina, foram Carmem Munarini; Juraci Franciscana; Maria Paula; Maria Salete; Noeli Borda e Rosalina Nogueira. Na Argentina, a pesquisadora ouviu, entre outras, Lucrécia Marcelli, da cidade de General José de San Martín; Maria Godoy e Julia Olmos, de Córdoba; Marina Pino, Anita Oliva, Olga Malvase e Carmem Ortiz, de Goya; Mônica Scherf e Regina Haller, de Puerto Rico; e Teresa Simon, de Eldorado.

A jornalista foi orientada pelo docente Renato Peixoto Dagnino. O professor da Unicamp atua no Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do IG e coordena o Grupo de Análise de Políticas de Inovação (Gapi), que se dedica, há mais de duas décadas, a pesquisar as relações entre ciência, tecnologia, inovação e sociedade, a partir de enfoques como a história e sociologia da ciência e da tecnologia, a economia da tecnologia, a administração pública e análise política. O estudo contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

“O Gapi permitiu esta interdisciplinaridade de temas. As linhas de pesquisa do grupo apresentam essa preocupação com a transformação social, no contexto de uma produção que vê o social para além da empresa. E o meu doutorado, assim como o mestrado, tem essa abordagem engajada e crítica à tecnociência, entendida como uma ligação entre ciência, tecnologia e mercado. A nova biotecnologia, a base dos transgênicos, é um dos principais exemplos para entendermos a tecnociência”, critica Márcia Tait.

A pesquisadora da Unicamp obteve coorientação da filósofa feminista Alicia Puleo Garcia, docente da Faculdade de Filosofia da Universidade de Valladolid (UVA), da Espanha. A filósofa, professora convidada do Programa de Pós-Graduação do IG, é uma das pioneiras nos estudos mundiais sobre ecofeminismo, umas das vertentes que, segundo Márcia Tait, contribuiu para ampliar a reflexão e o diálogo com os discursos, ações e concepções das mulheres campesinas. Alicia Puleo é autora, entre outros, de Ecofeminismo para otro mundo posible (Editora Cátedra).

“A relação entre os discursos das mulheres camponesas e ecofeminismo tangencia diversos momentos da minha pesquisa. O ecofeminismo surge na década de 1970 junto com a segunda onda do feminismo e os movimentos verdes. Pode ser entendido como uma aliança entre o feminismo e o ecologismo. Para Alicia Puleo, há quase três décadas o feminismo aceitou o desafio de refletir sobre a crise ecológica a partir de suas próprias noções. O resultado foi a emergência do ecofeminismo como uma forma de abordar a questão ambiental a partir das questões postas pelo feminismo e de categorias como mulher, gênero, androcentrismo, patriarcado, sexismo, cuidado, entre outras”, explica a jornalista.

Nova "ética"

A partir dos discursos e práticas das mulheres campesinas, Márcia Tait afirma que elas vêm construindo uma nova “ética” feminista com a natureza, muito próxima do ecofeminismo. Na opinião da pesquisadora do IG, essas mulheres latino-americanas vêm gerando conhecimentos comprometidos com esta ética singular em relação aos humanos e não humanos, propondo uma abordagem não reducionista para os problemas atuais.

Esta “ética” insere os impactos negativos dos cultivos transgênicos num contexto mais amplo de crítica, resistência e práticas alternativas ao modelo de produção agrícola industrial, além de remeter a outras questões fundamentais que envolvem as crises ambiental, social e alimentar. Trata-se, na verdade, de uma teoria que vem sendo construída pelas mulheres camponesas, esclarece a estudiosa.

“Ao resistirem ao modelo de agricultura industrial, às sementes transgênicas e outros pactos tecnológicos, os movimentos de mulheres camponesas questionam, mesmo de forma implícita, a aparente neutralidade destas tecnologias e do conhecimento a partir do qual foram desenvolvidas. De maneira explícita, elas mostram sua resistência à ciência ocidental capitalista e as novas agrobiotecnologias por reconhecerem-nas como portadoras de valores que promovem modos de desenvolvimento agrícola destrutivos do ponto de vista das práticas camponesas e da manutenção de sua autonomia.”

Márcia Tait informa que as pesquisas de campo foram compostas de viagens com permanência de três a sete dias que incluíram visitas a casas, locais de trabalho e reuniões onde estavam localizadas situações de interesse para a pesquisa no Brasil e Argentina. Nestes locais foram realizadas conversas informais e entrevistas semidirigidas com as mulheres. As pesquisas foram realizadas em três etapas durante os anos de 2010 e 2011.

Publicação

Tese: “Elas dizem não! Mulheres camponesas e resistência aos cultivos transgênicos no Brasil e na Argentina”
Autora: Márcia Maria Tait Lima
Orientador: Renato Peixoto Dagnino
Coorientadora: Alicia Puleo Garcia
Unidade: Instituto de Geociências (IG)
Financiamento: Fapesp