Resultado de um processo evolutivo milenar, o mecanismo protege as gemas de rebrota, que possibilitam às plantas sobreviverem a eventos de fogo. Estudo realizado na Estação Ecológica de Santa Bárbara pode contribuir para estratégias de proteção diante das mudanças climáticas
Em regiões tropicais do planeta, savanas e florestas coexistem muitas vezes no mesmo local, expostas às mesmas condições climáticas. É o caso do Cerrado brasileiro, bioma que abriga áreas de cerrado propriamente dito (savana no sentido estrito), de cerradão (floresta mesófila esclerófila que se desenvolve na ausência do fogo, tanto em solos pobres – cerradão distrófico – quanto em solos mais ricos – cerradão mesotrófico), de campo sujo (formação herbácea-arbustiva com árvores pequenas do Cerrado), de florestas e de matas estacionais semideciduais (formação florestal cujas árvores perdem ou ganham folhas em função das variações de temperatura e do balanço hídrico).
O fenômeno intriga botânicos e ecólogos, pois savanas e florestas apresentam estrutura e composição de espécies bastante distintas, fazendo com que suas dinâmicas e funcionalidades também sejam diferentes. As savanas, por um lado, possuem um denso e contínuo estrato de gramíneas, que são muito inflamáveis e alimentam eventos de fogo que impactam diretamente outras espécies vegetais. Nas florestas, por outro lado, as árvores apresentam um dossel muito maior e contínuo, sombreando as partes baixas e impedindo o desenvolvimento de gramíneas inflamáveis.
Uma peculiaridade das savanas é que, tendo evoluído ao longo de milênios na presença do fogo, suas espécies lenhosas possuem cascas espessas, que protegem os corpos das plantas. Além disso, após as queimadas, são capazes de formar novos ramos e folhas a partir de estruturas conhecidas como gemas.
Estudo realizado na Estação Ecológica de Santa Bárbara, no Estado de São Paulo, investigou o quanto de casca as espécies de savanas e de florestas do Cerrado produzem; se as espécies de savanas produzem mais casca do que as espécies de florestas; se as espécies que produzem mais casca também protegem melhor suas gemas; e, por último, se as espécies que são capazes de ocorrer tanto em savanas quanto em florestas (chamadas de generalistas) produzem diferentes quantidades de casca dependendo do ambiente em que estão crescendo.
O estudo, coordenado por Alessandra Fidelis, professora do Departamento de Biodiversidade da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro, teve como primeiro autor o doutorando Marco Antonio Chiminazzo. E contou com a participação de Aline Bombo, que fez pós-doutorado na Unesp de Rio Claro; e de Tristan Charles-Dominique, pesquisador na Sorbonne Université e na Université de Montpellier, na França. Artigo a respeito foi publicado no periódico Annals of Botany.
“Observamos que as espécies que ocorrem em savanas produzem aproximadamente três vezes mais casca do que as que ocorrem nas florestas. Enquanto as espécies generalistas apresentam produção de casca intermediária: maior em áreas de savana do que em áreas de floresta. Essa capacidade de ajustar a produção de casca de acordo com o ambiente é conhecida como plasticidade fenotípica, sendo possivelmente uma estratégia adotada por essas espécies. Finalmente, verificamos que as espécies que produzem mais casca protegem melhor suas gemas e tecidos internos”, diz Chiminazzo à Agência FAPESP.
E acrescenta: “Nosso trabalho mostra que o fogo é um fator importante para as vegetações savânicas do Cerrado, promovendo espécies lenhosas que são capazes de lidar com esse distúrbio e que não poderiam habitar ambientes sombreados de floresta”.
O estudo respalda a tese de que, quando realizadas de forma criteriosa, com zoneamento e cronograma, as queimadas são um método altamente desejável para o manejo das partes savânicas do Cerrado. O zoneamento define uma estrutura em forma de mosaico e o cronograma estabelece as épocas certas para queimar cada parte, em sistema de rodízio. “As espécies do Cerrado possuem adaptações ao fogo: uma grande produção de casca e uma alta proteção das gemas. Essas características, resultantes de um longo processo evolutivo, permitem que sobrevivam aos eventos de fogo e se desenvolvam a partir deles”, comenta Fidelis, orientadora de Chiminazzo.
Remanescente
Localizada no município de Águas de Santa Bárbara, a estação ecológica onde o estudo foi conduzido é um importante remanescente do Cerrado nativo no Estado de São Paulo, abrigando os diferentes tipos de savanas e florestas encontrados no bioma. “Foram amostradas espécies de arbustos e árvores em quatro diferentes tipos de vegetação que possuem diferentes frequências de fogo e disponibilidade de luz. Investigamos o quanto de casca elas produzem enquanto se desenvolvem, assim como quão bem suas gemas são protegidas contra os efeitos do fogo. Posteriormente, cada uma das espécies foi segregada de acordo com o ambiente que tem preferência em habitar, compondo três grupos: especialistas de savana, especialistas de floresta e generalistas [capazes de crescer nos dois tipos de ambiente]”, informa Chiminazzo.
Segundo o pesquisador, estudos futuros deverão buscar entender como e por que certas espécies conseguem ajustar sua produção de casca enquanto outras não. “Em cenários de mudanças climáticas e de mudanças nos regimes de fogo, conhecer melhor essas espécies constitui uma grande oportunidade para entendermos e prevermos quais organismos estarão mais ou menos ameaçados, de acordo com a capacidade que eles têm de se adaptar frente a diferentes condições ambientais”, afirma.
O estudo recebeu apoio da FAPESP por meio de Auxílio a Jovens Pesquisadores concedido a Fidelis. Além disso, Chiminazzo recebeu Bolsas de Mestrado e Doutorado.
O artigo Bark production of generalist and specialist species across savannas and forests in the Cerrado pode ser acessado em: https://academic.oup.com/aob/advance-article-abstract/doi/10.1093/aob/mcad014/6991178?redirectedFrom=fulltext.