No coração de São Paulo, o Triângulo Histórico é um reflexo das transformações que moldaram a cidade: de núcleo colonial a metrópole verticalizada. Com edifícios de diferentes gerações, o local enfrenta desafios para equilibrar a preservação de seu patrimônio cultural e a adaptação às demandas contemporâneas. Produzido na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design (FAU) da USP, um artigo publicado na revista Cities categoriza 572 edifícios do Triângulo Histórico com o uso de modelagem em 3D, e aponta necessidade de medidas de conservação e maior engajamento comunitário para reforçar sua importância como polo turístico e cultural único.
Entre 2020 e 2023, os pesquisadores realizaram análises de campo, levantamento de dados fotográficos e criação dos modelos digitais em 3D para a documentação. Após essa fase, eles categorizaram os edifícios em três gerações: tradicional, transitório e moderno. O artigo é resultado do projeto temático da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) Experiência Arquigrafia 4.0. Sediado na FAU, o projeto é um ambiente colaborativo com imagens digitais de edifícios e espaços urbanos do Brasil e da comunidade lusófona, contendo cerca de 10 mil imagens de arquiteturas e espaços urbanos.
“Essa diversidade de gerações de edifícios, com estilos que vão do eclético ao modernista, é um dos aspectos mais belos do centro histórico. Ela conta a história do desenvolvimento da cidade e cria uma identidade única, diferente de qualquer outra grande metrópole, como Nova York ou Paris”, diz Sayed Samimi, pesquisador visitante FAPESP da Universidade de Herat, Afeganistão, na FAU.
Apesar dessa beleza, a preservação do centro histórico enfrenta desafios como a degradação de fachadas, o abandono de prédios, a falta de políticas relativas às camadas geracionais de desenvolvimento, além da priorização de novos edifícios. “Sempre haverá grupos que defendem a modernização e outros que priorizam a conservação. Mas experiências internacionais mostram que é possível ter ambos: preservar o patrimônio histórico enquanto se promove desenvolvimento econômico e social”, explicou o pesquisador. Ele também defende a necessidade de intervenções para revitalizar o local como um espaço dinâmico, seguro e economicamente viável.
“Precisamos transformar o Triângulo Histórico em um espaço vibrante, com atividades turísticas, culturais e comerciais, que atraiam pessoas em todos os momentos do dia” (Sayed Samimi)
O urbanista destaca a importância de medidas específicas para cada geração de edifícios identificada. Nos edifícios da primeira geração, de estilo eclético, são recomendadas mudanças como a revitalização de fachadas e a padronização de cores, enquanto os prédios modernistas da terceira geração precisam de ações como a remoção de grafites e melhorias no design dos andares térreos. Além da identificação dessas necessidades, o uso da tecnologia, com os modelos 3D, também pode apoiar políticas mais direcionadas. “A partir dos modelos digitais, podemos propor medidas específicas para cada geração de edifícios”, afirma Samimi.
Camadas de história
O Triângulo Histórico de São Paulo, delimitado pelas Igrejas do Carmo, São Bento e São Francisco, é um mosaico de camadas arquitetônicas que retrata o desenvolvimento da cidade desde o período colonial. São 683 edifícios. Desses, foram estudados 572, pois os outros 111 estão localizados em quarteirões e não são visíveis da rua. As edificações foram divididas em três gerações pela pesquisa: a primeira, com prédios ecléticos de influência europeia; a segunda, marcada pelo estilo art déco; e a terceira, que reflete o modernismo e a verticalização do século 20. Dentre os edifícios estudados, 200 (35%) são de 1ª geração; 97 (17%) são de 2ª geração e 275 (48%) foram classificados como 3ª geração.
“O Triângulo Histórico conta a história do desenvolvimento de São Paulo, com edifícios de várias gerações lado a lado, criando uma narrativa visual única”, atenta Samimi. Essas gerações representam as dinâmicas econômicas da história da cidade. Enquanto os prédios ecléticos remetem à riqueza do ciclo do café, os edifícios modernistas evidenciam a expansão financeira e industrial de São Paulo no século 20. A construção de edifícios de segunda geração se tornou predominante entre as décadas de 1920 e 1940, período inicial da República.
Preservar essa pluralidade arquitetônica, segundo Samimi, é essencial para valorizar a história paulistana e garantir que o Triângulo Histórico continue sendo um espaço de memória e identidade cultural. Apesar disso, a coexistência de estilos é tanto uma riqueza quanto um desafio para a preservação, por conta da complexidade das ações necessárias. A diversidade das várias camadas históricas exige uma abordagem que considere as características únicas de cada geração. “Com os modelos 3D, é possível simplificar a complexidade do local e destacar as camadas históricas de forma didática e acessível, tanto para turistas quanto para formuladores de políticas públicas”, detalha.
Modelagem 3D
A aplicação de modelagem 3D foi um dos pilares do estudo realizado no Triângulo Histórico de São Paulo, proporcionando uma visão inovadora para a análise e a preservação da arquitetura. Por meio da integração de levantamentos fotográficos, mapas históricos e ferramentas digitais avançadas, os pesquisadores conseguiram recriar as várias fases de desenvolvimento arquitetônico da área. Samimi destaca que “esta abordagem arqueológica das transformações urbanas oferece uma compreensão visual única da evolução do espaço urbano”. O modelo animado criado pela equipe evidencia, década a década, as mudanças em sua composição arquitetônica.
A tecnologia 3D foi desenvolvida em etapas. Primeiro, os edifícios foram digitalizados com base em suas características, como número de andares, materiais de construção, cores predominantes e estilo arquitetônico. Em seguida, esses dados foram integrados no Sistema de Informação Geográfica (SIG), permitindo a construção de modelos tridimensionais com precisão georreferenciada. A animação final, criada com o uso do Blender e editada no Adobe After Effects, apresenta as transições entre gerações de edifícios, permitindo que espectadores visualizem tanto a perda de estruturas históricas quanto o surgimento de novas construções.
A criação de um espaço urbano dinâmico, que equilibre desenvolvimento econômico e preservação cultural, é almejado por iniciativas como esta, que colocam a história, desenvolvimento e a tecnologia em diálogo constante. “Usos futuros possíveis são os de visitantes com seu próprio dispositivo móvel e um QR code disponível nas paredes do centro histórico explorarem a área, visualizando os prédios históricos em realidade virtual. Essa tecnologia se tornará mais comum para guiar visitantes pelo percurso histórico,” antecipa Samimi.
O trabalho City profile: Transformations and challenges of São Paulo’s historic triangle está disponível neste link. A publicação do artigo conta com a coautoria dos professores Artur Rozestraten e Beatriz Bueno, da FAU.