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Aqui a ciência é prioridade

Publicado em 08 novembro 2017

Encravando num subúrbio pacato, de ruas largas e arborizadas a maia hora de carro do centro de Melbourne, segunda maior metrópole australiana, o acelerador de partículas Synchrotron é, talvez, o melhor exemplo de como a Austrália, um país rico em recursos naturais e exportador de matérias-primas como o Brasil, está dando passos importantes rumo à economia do conhecimento -uma corrida em que o Brasil dá sinais de estar ficando para trás.

O Synchrotron é um laboratório que está na fronteira do avanço científico mundial. Ali, num galpão de 15 000 metros quadrados cuja fachada circular lembra a de um ginásio de esportes, cientistas enxergam com precisão as propriedades de toda sorte de átomos e moléculas presentes na natureza. Isso é possível com o uso de elétrons que, movimentando- se na velocidade da luz em enormes circuitos mantidos a vácuo, emitem um brilho imperceptível, mesmo com os equipamentos mais avançados de um laboratório convencional. Como são estruturas enormes, caras e complexas de construir, dá para contar nos dedos os aceleradores de partículas no mundo- há 48 unidades desse tipo em 23 países, boa parte deles na Europa e nos Estados Unidos.

A unidade australiana é uma das mais produtivas: por ano são feitos por lá mais de 1000 testes. A grande maioria é de uma ciência básica que só deverá trazer avanços perceptíveis para a humanidade em décadas. Mas, desde que foi aberto, em 2007, o Synchrotron coleciona resultados bem palpáveis. A subsidiária local da farmacêutica americana Pfizer testou novas terapias contra o câncer que já estão no mercado. Recentemente, um grupo de mineradoras, incluindo a australiana BHP e a brasileira Vale, financiou pesquisadores da Universidade Monash, que fica ao lado do Synchrotron, em experimentos sobre a resistência dos trilhos utilizados no escoamento da produção de suas minas. "Em 6 horas de testes no acelerador de partículas, conseguimos levantar um volume de informações que demora ríamos cerca de um ano para obter pelos métodos tradicionais", diz o engenheiro John Cookson, da Universidade Monash, condutor das pesquisas.

Os recursos de empresas e universidades que alugam o espaço para pesquisas hoje representam 76% do orçamento do acelerador, de aproximadamente 25 milhões de dólares por ano. O restante da conta é fechado com o apoio do governo australiano, que, em agosto, anunciou um aporte de 400 milhões de dólares pelos próximos dez anos no laboratório, administrado por um grupo de cientistas australianos.

O dinheiro deve ser empregado em obras para ampliar as instalações. "Vamos praticamente duplicar nossa capacidade de trabalho", diz o físico Andrew Peele, gerente do Synchrotron. "Estamos muito animados com a expansão do laboratório." Assim como a Austrália, o Brasil também está investindo num acelerador de partículas. O clima por aqui, no entanto, é de apreensão com a possível falta de recursos para terminar o projeto. Há duas décadas o país já tem uma dessas estruturas, o Laboratório Nacional de Luz Síncroton, mantido pelo Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais ( CNPEM), organização social fundada por cientistas em Campinas, no interior paulista. Considerado ultrapassado pela comunidade científica mundial, o acelerador deve ser desativado quando ficar pronto o Sirius, uma nova estrutura com 68 000 metros quadrados de área construída ao lado do laboratório atual, ao custo de 1,8 bilhão de reais.

O Sirius terá capacidade para realizar quatro vezes mais testes do que faz hoje o similar australiano. A promessa é que o brilho gerado pelos elétrons na nova estrutura tenha qualidade superior à dos demais aceleradores no mundo todo, o que permitirá testes em materiais impenetráveis pelo laboratório atual, como as rochas ao redor da camada de pré-sal, onde está boa parte das reservas de petróleo brasileiras. Pelo cronograma inicial das obras, de 2014, o Sirius deveria funcionar em potência máxima no começo de 2019. Agora, a previsão otimista é que isso aconteça daqui a três anos. Tudo em razão do ritmo conta-gotas dos repasses do governo federal, responsável por quase 100% do orçamento do laboratório atual e investidor único do Sirius.

Neste ano, em que a construção entrou na fase mais importante, a da instalação do circuito por onde os elétrons rodarão em altíssima velocidade, a diferença entre o que estava previsto pelo cronograma e o que de fato entrou nos cofres do CNPEM beira os 500 milhões de reais. O descompasso financeiro causou ajustes de contratos com os fornecedores e a troca de algumas peças por similares mais baratos. "Estamos hoje vivendo de mês em mês", diz o físico Antonio José Roque da Silva, diretor do laboratório. E a expectativa não é boa para o ano que vem: o orçamento previ - to do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações f Telecomunicações deve ser metade do que é em 201y. Projetos tocados pela pasta, como o do Sirius, deverãtb sofrer apertos ainda maiores. "O Sirius corre sérios ri - cos de parar", diz um executivo do ministério.

Na origem de realidades tão opostas de Austrália Brasil na corrida pelo domínio de uma estrutura d 1 ponta para o avanço do conhecimento estão visões bem distintas sobre políticas públicas para inovação. Tradicionalmente, os dois países sempre estiveram na categoria de aspirantes a um posto de relevância na pesquisa científica mundial, com ilhas de excelência aqui ou ali, mas sem a mesma consistência acadêmica de Estados Unidos, França ou Reino Unido. Há décadas Brasil e Austrália gastam menos em ciência e tecnologia do que a média da OCDE, o clube das nações desenvolvidas. Na Austrália, o enfoque escolhido para fomentar a inovação foi o de colaboração entre Estado, academia e iniciativa privada.

Desde 1985 o governo australiano concede créditos fiscais generosos a empresas e pessoas que doam recursos às pesquisas em universidades ou laboratórios independentes, como o Synchrotron. O resultado: um mercado fértil de fontes de financiamento para a pesquisa. Em 2015, segundo dados do Tesouro australiano, que fiscaliza o programa, cerca de 13 000 doadores colocaram 16 bilhões de dólares à disposição de cientistas, em troca de uma renúncia fiscal que não chegou a 15% do valor investido. Atualmente, cerca de 60% dos gastos em ciência e tecnologia no país são financiados por empresas, uma das maiores taxas desse tipo de participação no mundo. Enquanto isso, no Brasil, o Estado historicamente foi o grande provedor de recursos para a ciência, até por falta de abertura e de estímulo à participação privada.

Em 2015, os desembolsos da União e dos estados somaram 60 bilhões de reais, o dobro do que investiram as empresas. Recentemente, a legislação brasileira passou a prever incentivos para financiar a inovação dentro das empresas, como a bem-sucedida Lei do Bem, que dá descontos fiscais aos negócios inovadores. Mas ainda não dispomos de mecanismos claros para incentivar a doação de recursos à pesquisa em universidades ou centros de pesquisa independentes. "Não é à toa que a pesquisa é tão dependente do Estado", diz o economista Rafael Lucchesi, diretor de educação e tecnologia no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial.

No Síncroton de Campinas, por exemplo, só 1% dos usuários é constituído de funcionários de empresas, e em geral de grandes negócios com algum caixa para queimar em experimentos de longo prazo. É o caso da farmacêutica Cristália, que usa o laboratório para analisar as propriedades de fungos encontrados no Nordeste que servirão de base para novos antibióticos em breve. A Petrobras analisa ali a resistência dos materiais de suas refinarias. Já a petroquímica Braskem testou no Síncroton as propriedades químicas de um tipo de plástico patenteado por ela e capaz de suportar temperaturas de até 100 graus Celsius sem deformar, o que já despertou a atenção de potenciais clientes nas indústrias de embalagens e montadoras de veículos no Brasil e nos Estados Unidos. "Esse produto hoje é a grande aposta da Braskem para conquistar novos mercados", diz Patrick Teyssonneyre, diretor global de inovação e tecnologia da empresa.

AGENDA NACIONAL

A consequência dessas diferenças é que, diferentemente do Brasil, a Austrália tem colhido resultados consistentes em ciência e tecnologia. Desde 2002 o investimento na área passou de 1,5% para 2,3% do PIB e está perto de atingir a média das demais nações desenvolvidas, de 2,5%. No Brasil, o volume de investimentos estagnou ao redor de 1%. Nos últimos 15 anos, a Austrália subiu do nono para o sexto lugar no ranking dos maiores gastos per capita com ciência, à frente de França e Reino Unido.

Enquanto isso, o Brasil caiu urna posição e hoje está em 15° lugar. Na ponta, o volume mais abundante de recursos empurra uma economia que, na contramão da tendência mundial, está conseguindo reverter a queda nas exportações de bens de alto valor agregado- cuja produção migrou expressivamente para a China. Em 2014, a fatia dos bens de alta tecnologia em relação ao total de exportações de manufaturados da Austrália chegou a 14%, 4 pontos percentuais acima do índice de 2007. No mesmo período, no Brasil, a participação dos bens de alto valor agregado no comércie<iebens manufaturados só caiu: de 19% para 10%.

Os incentivos à comunidade científica australiana motivaram a instalação de centros de pesquisa de multinacionais no país, como o da americana Boeing, que em 2017 abriu um laboratório em Brisbane, terceira maior cidade local, para estudar o impacto da realidade aumentada na aviação. Por trás da receita do sucesso recente da Austrália no fomento à ciência de ponta estão qualidades há muito tempo em falta no Brasil: visão de longo prazo e comprometimento político com a transição para urna economia baseada em conhecimento. Por lá, o modelo de usar o dinheiro privado para fomentar a ciência se manteve de pé por sucessivos governos, independentemente do espectro ideológico.

Em 2015, com o fim do ciclo mundial de altos preços para matérias- primas- o chamado "boom de commodities", que, assim como o Brasil, beneficiou a Austrália, um dos maiores exportadores de minério de ferro, carne e grãos -, o governo do primeiro-ministro liberal Malcolm Tumbull divulgou uma agenda nacional de investimentos em ciência e tecnologia com efeitos até 2030. No rol de medidas, além da reforma do Synchrotron e da ampliação do sistema de créditos fiscais para as empresas que investem em inovação, estão mais de 2 bilhões de dólares de recursos públicos para áreas em que o país já é referência mundial em pesquisas de ponta e que deverão gerar negócios promissores nas próximas décadas, como biotecnologia e computação quântica.

"Nosso crescimento no futuro vai depender de um 'boom de ideias'", disse Turnbull num vídeo divulgado no YouTube para anunciar o plano. Já o Brasil costuma ter uma agenda diferente de ciência e tecnologia a cada mandato presidencial. Desde 2007, no governo Lula, o país já teve três com centenas de boas intenções salpicadas ent ações, objetivos e "eixos estruturantes", que, em mum, demonstram uma baixa capacidade do para ter uma visão precisa do que quer para o setor. planejamento para a ciência costuma deixar de critérios de competência para atender a todos os resses da comunidade científica", diz Carlos Pacheco, presidente da Fapesp, agência paulista fomento à inovação. No fim, criam-se documentos são verdadeiras colchas de retalhos com pouca vância para o avanço do conhecimento no país. O timo, em 2016, já no governo Temer, não contou o presidente durante a divulgação. A consequência planos inócuos ou mal concebidos.

Talvez o mais evidente seja o Ciência Sem Fronteiras, programa de intercâmbio lançado em 2011 para alunos de versidades públicas, notório pelos casos de que foram parar em universidades estrangeiras qualidade inferior às que estudavam no Brasil ou países cujo idioma não dominavam. Pela falta de canismos de avaliação sobre o impacto dessas à ciência brasileira, neste ano o Ministério da Nação, que gastou 12 bilhões de reais no projeto, restringir as bolsas a alunos de pós-graduação. Olhando para o futuro, há sinais de que o Brasil, poucos, vem adotando algo da cartilha que a Austrália segue para elevar o investimento em ciência e tecnologia. Um exemplo é a busca de novas fontes de recursos para pesquisa. Desde o ano passado, o Instituto de Tecnologia da Aeronáutica, centro aberto nos anos 40 por pesquisadores trazidos do americano Massachusetts Institute ofTechnology, e que até hoje se mantém na elite do conhecimento feito no Brasil, deve levantar mais de 20 milhões de reais, de fontes como a fabricante sueca de aviões Saab, para conduzir 40 projetos de pesquisas, que incluem satélites e aeronaves militares. "A maior concorrência por verbas públicas de ciência no Brasil deve fortalecer nossa estratégia de buscar dinheiro no exterior", diz o engenheiro Anderson Ribeiro Correia, reitor do ITA.

O financiamento privado pode ganhar um impulso com um projeto de lei da senadora Ana Amélia (PP-RS), que já passou pelo Senado e hoje está na Câmara dos Deputados, prevendo isenções fiscais aos doadores de recursos para a pesquisa científica. "A inspiração vem dos fundos patrimoniais de universidades americanas e inglesas de excelência, como Harvard e Oxford", diz Ana Amélia. O Brasil até agora não conseguiu criar uma política sustentável de apoio à ciência. A torcida é para que o esgotamento do financiamento público dê lugar a um modelo que deu certo na Austrália - e para que o Brasil consiga acelerar o passo rumo a uma economia baseada no conhecimento.

"FALTA VISÃO ESTRATÉGICA NO BRASIL"

A economista paranaense Fernanda De Negri é profunda conhecedora dos gargalos da ciência no si I. Doutora em economia pela Universidade de Campinas e pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Fernanda publicou cinco livros sobre o tema. Um deles, Produtividade no Brasil: Desempenho e Determinantes, foi finalista do Prêmio Jabuti, o mais prestigiado do mercado editorial brasileiro, em 2015. Atualmente, ela é pesquisadora envidada do Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, onde prepara est dos sobre os entraves ao investimento em pesquisa científica no Brasil. Na entrevista a seguir, Fernand explica por que falta visão de longo prazo sobre o tema no país - e como corrigir o problema.

O Brasil investe pouco em ciência?

O país tem investido menos do que outras eco no ias emergentes, como China e Corei a do Sul. Mas o problema mais grave é não ter uma preocupação sobre aonde a gente quer chegar como país com o rec rso aplicado. Os investimentos em ciência percorre um caminho longo até trazer resultados. Um exemplo que costumo citar é o do Captopril, tratamento para h i e rtensão que passou a ser comercializado no mundo nos anos 70. A fabricação do remédio foi possível c m o uso de moléculas presentes no veneno da jara ca, cuja propriedade medicinal havia sido descobert cientistas brasileiros 30 anos antes. Apesar diss , no Brasil, estamos acostumados a ver períodos de maiores investimentos seguidos por cortes abruptos das verbas disponíveis, como os que estão acontecendo agora. O orçamento do governo federal para a pesquisa científica caiu pela metade do ano passado para cá. Isso é péssimo para o cientista, que, sem segurança sobre o futuro de suas pesquisas, desiste dos estudos ou vai para outros países para terminá-los.

Por que isso acontece?

Há uma porção de fatores por trás do problema. Um dos principais é a falta de um diálogo da comunidade científica brasileira com o restante da sociedade sobre quais desafios a própria sociedade gostaria de ver resolvidos pelos cientistas. Essa visão deveria estar nas estratégias de ciência e tecnologia do governo, mas não está. Os documentos muitas vezes atendem aos pleitos da comunidade científica em detrimento das necessidades do país, o que é um erro.

E a crise econômica deve piorar a situação ...

Numa situação de ajuste fiscal, como a que o Brasil vive agora, pouca gente entende a importância de preservar a ciência dos cortes de verbas. Isso acaba colocando em risco todo o investimento já realizado.

Como resolver essa falta de diálogo?

A agenda de ciência e tecnologia do governo deveria envolver gente de todas as áreas, e não apenas de um ministério designado para o assunto, como é o comum no Brasil. Nos Estados Unidos, a maior parte da verba para o tema sai do orçamento dos departamentos de Energia e Defesa. Há uma secretaria específica, ligada ao presidente da República, que coordena a comunicação entre os departamentos e estabelece as pesquisas estratégicas para o futuro do país. É um modelo com eficácia comprovada: os americanos estão tradicionalmente na vanguarda do avanço científico. O Brasil deveria espelhar-se nesse tipo de governança.

As empresas privadas poderiam investir mais em ciência no Brasil?

Achar que as empresas serão as grandes protagonistas do avanço científico é um mito. Normalmente, elas não dispõem de tempo, muitas vezes longo, para uma descoberta chegar ao mercado. No M IT, por exemplo, que é uma das maiores referências no mundo em ciência básica, apenas 10% do orçamento para as pesquisas vêm diretamente de empresas. O restante é verba do governo federal e dos fundos patrimoniais da universidade, os chamados endowments, mantidos por doações de ex-alunos ou de empresas que financiam o ensino superior em troca de benefícios fiscais. Dito isso, creio que as empresas poderiam colaborar mais para o avanço do conhecimento no Brasil.

Quais são os principais obstáculos para a participação privada e como removê-los?

Em grande medida, na raiz do problema, estão grandes carências do capitalismo brasileiro, como a baixa abertura comercial e o excesso de burocracia no ambiente de negócios. Esses entraves reduzem os incentivos e trazem complicações desnecessárias para as empresas inovadoras. Há ainda questões intrínsecas ao modelo de financiamento à ciência, como a falta de regras claras sobre a gestão dos fundos patrimoniais de universidades. Discutir o assunto, como o Congresso brasileiro vem fazendo atualmente, é um bom caminho para estimular a participação das empresas no financiamento da ciência no Brasil.