A manipulação de teses científicas para atender a interesses diversos é uma prática que acontece no mundo todo. No Brasil, o caso do metanol foi exemplar. Escudados em interesses comerciais e políticos, vários agentes da sociedade, entre os quais alguns cientistas, assustaram a população alardeando as propriedades tóxicas do produto. O tempo comprovou o que a ciência já sabia: apesar de tóxico, o metanol como combustível é muito mais limpo que a gasolina e não causou nenhum problema para a qualidade do ar ou para os frentistas que o manipulam até hoje nos postos de gasolina na cidade de São Paulo.
Agora estamos assistindo a um caso semelhante. Trata-se da queima da palha de cana-de-açúcar. Não quero entrar no mérito dos incômodos que ela causa e nem se ela é de fato necessária por razões técnicas (falta de máquinas e de adequação do sistema agrícola) ou sociais (desemprego). São questões que têm seus foros específicos e pessoas com maior autoridade que eu para analisar. Atenho-me, portanto, à minha área de conhecimento. Como médico toxicologista.
O tempo comprovou o que a ciência já sabia: o metanol como combustível é muito mais limpo que a gasolina não posso admitir o uso de argumentos científicos impróprios para validar alguma tese, atenda ela a interesses de quem quer que seja.
Dessa forma é preciso esclarecer a verdade sobre algumas informações que têm sido veiculadas pela imprensa.
A primeira delas associa o aumento de incidência de doenças respiratórias nas regiões canavieiras com as queimadas. Não existe nenhuma comprovação a esse respeito. Os níveis de ocorrência nos municípios canavieiros são semelhantes aos de qualquer outro município do País, onde ocorre o fenômeno da inversão térmica, independentemente da estação ou de queimadas. É sabido que nos meses de junho, julho e agosto, no Hemisfério Sul, é maior a incidência de doenças respiratórias, mesmo nas épocas anteriores à industrialização, como decorrência da queda da temperatura e da inversão térmica. É inegável que qualquer fonte de poluição pode agravar o quadro, seja ela natural (poeira, por exemplo), seja industrial. Pesquisando as estatísticas do município de Catanduva (município canavieira envolvido em acirradas disputas judiciais a respeito do tema), pude constatar que o número de consultas por doenças respiratórias, nos meses de janeiro a abril, quando não ocorre a queimada, é significativamente maior do que nos meses de setembro a dezembro (7.564 ante 6.613). Portanto, não temos evidências científicas aceitáveis para associar incidências de doenças respiratórias com queimadas.
A outra afirmação bastante veiculada é a de que o "carvãozinho", resíduo da queima da palha de cana-de-açúcar, pode provocar câncer nas pessoas. A esse respeito tem sido utilizada uma tese da mestra Gisele Cristiane Marcomini Zamperlini, do Instituto de Química da Unesp, demonstrando que as queimas liberam substâncias carcinogênicas e mutagênicas. Trata-se de uma tese interessante, com uma cuidadosa análise laboratorial semiquantitativa da fuligem colhida após a queima, na qual foram encontrados hidrocarbonetos aromáticos, compostos com propriedades mutagênicas e cancerígenas. Essa análise semiquantitativa não determina com exatidão a quantidade ou a concentração de uma substância, mas apenas indica sua presença relativa. É como se um fosse um detector de fumaça que não distingue um incêndio de um cigarro aceso à sua volta. Pergunto, então, se é lícito associar ou inferir unia relação causa-efeito, baseado em análises semi-quantitativas, a etiologia de um tumor cancerígeno ou uma doença respiratória? A ciência séria afirma que a resposta é não. É preciso uma prova cabal da presença da substância agressora no corpo da vítima. Deve ser demonstrado que essa pessoa foi exposta à substância, e esta, uma vez absorvida ou incorporada, está presente ou afetou o local da lesão.
A inferência da mestra Gisele não é aceita pela comunidade científica. Se fosse verdadeira, muitos metalúrgicos teriam graves problemas neurológicos porque manipulam cia-neto, muitos trabalhadores em fábricas de bateria teriam seqüelas severas de saturnismo e os cientistas sofreriam de demência, além de doenças renais e pulmonares causadas pelo mercúrio. E, pasmem, todo brasileiro que adora um churrasquinho com os amigos nos fins de semana estaria fadado a contrair câncer, já que os resíduos do carvão que impregnam a carne contêm benzopireno, substância reconhecidamente cancerígena.
Assim, a tese de mestrado analisando a composição da fuligem, embora bem realizada tecnicamente, carece do item mais fundamental da investigação científica, ou seja, a correlação clínica com os achados semi-quantitativos da fuligem. Não é aceitável e é perigosa a hipótese não fundamentada de que a fuligem do chão vai chegar ao pulmão, atingindo quantidades significativas no corpo da vítima, causando doenças graves. Isso sem a realização de qualquer medição ou detecção dessas substâncias no sangue, urina e outros materiais biológicos. Sem contar com a necessidade de análise nos órgãos dos cadáveres para verificar a presença dos HPAs (hidro-carbonetos poliaromáticos).
É preciso, portanto, ir devagar com o andor. A investigação científica séria é inimiga das conclusões precipitadas. Para se ter uma idéia disso, a comunidade científica internacional demorou cinqüenta anos de pesquisas intensas para conseguir relacionar o cigarro com a ocorrência de câncer. Achar e provar são coisas muito distintas que não podem ser confundidas. Querer dar ares de ciência a convicções ideológicas é um erro, não importa quem o cometa.
* Médico toxicologista e diretor do Centro de Assistência Toxicológica (Ceatox) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Notícia
Gazeta Mercantil