Desde que os antropólogos passaram a olhar a vida urbana como um espaço privilegiado de reflexão, uma fonte variada e inesgotável de objetos de estudos tem vindo à tona. Apropriando-se de um olhar distanciado, o cientista social começou a percorrer sua própria cidade procurando entender o que até então parecia cotidiano e trivial. Assim, andar pelo bairro, escutar a apresentação de um conjunto de música, observar os grupos locais ou mesmo ler um texto deixou de ser um exercício desinteressado, passando a constituir um detalhado e complexo trabalho de campo. Antropologia urbana, organizada pelo professor Gilberto Velho, nasceu do objetivo de divulgar algumas destas análises realizadas nas cidades do Rio de Janeiro e de Lisboa.
O livro, que reúne ensaios de cientistas sociais brasileiros e portugueses, exprime a convivência que vem sendo cultivada entre o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e o ISCTE (Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa), em Lisboa. Nesta obra conjunta, os autores, que desenvolveram seus trabalhos de pós-graduação em uma dessas respectivas instituições, encararam as duas metrópoles como palco de uma fecunda investigação antropológica.
Assim, acompanhando entrevistas, estudos de caso, dados estatísticos, pesquisas históricas e análises de textos literários, o leitor mergulha em incursões etnográficas que discutem, por exemplo, as dinâmicas sociais dos conhecidos bairros de Copacabana no Rio, da Alfama e da Bica em Lisboa, as representações da população idosa sobre o espaço urbano, as condutas sexuais nas diferentes localidades da cidade do Rio, a prática política em um subúrbio carioca, e o despontar de uma indústria turística no Rio de Janeiro.
Ainda nesse trajeto, dois estilos musicais são estudados: o fado, visto como uma forma de expressão popular, urbana, plural e fragmentada, e o rap português, que ao mobilizar um determinado público cria novas linguagens e identidades. A coletânea inclui também um ensaio que revela no Fernando Pessoa do Livro do desassossego o antropólogo que discorre sobre as principais características da vida mental metropolitana.
Em todos os textos, o espaço urbano encontra-se relacionado aos universos culturais em questão. O bairro, o subúrbio, a praia acabam por mediar padrões específicos de comportamento e de inserção social. A heterogeneidade dos vários ''mundos sociais", seja da Zona Sul ou Zona Norte do Rio de Janeiro, do centro ou da periferia de Lisboa, com seus sujeitos desempenhando papéis em constante transformação, é aqui esmiuçada pelos autores na tentativa de formularem uma argumentação capaz de abarcar a multiplicidade dos fenômenos arraigados na paisagem cosmopolita.
Ou seja, para além da diversidade temática e do diálogo com diferentes disciplinas acadêmicas, já que muitos autores usufruem conceitos caros à ciência política, história, geografia, entre outras, esses artigos apresentam uma mesma preocupação teórica: discutir os dilemas, os significados e as particularidades da inserção do indivíduo no seio da sociedade contemporânea.
Mesmo retratando características específicas das sociedades brasileira e portuguesa, a coletânea procura fornecer subsídios para discussões bem mais amplas acerca do fenômeno urbano, que atualmente abrange dimensões históricas e culturais consideráveis. O desenvolvimento das cidades em todo o mundo, com seus sujeitos incógnitos e novos ritmos de vida, inaugurou padrões de sociabilidade diferenciados que, ao serem mapeados e estudados, evidenciaram a existência de códigos e valores até então desconhecidos pelas normas usuais. Daí o esforço de conhecer as minúcias de um cotidiano particular a fim de chegar a compreensões mais abrangentes sobre esta recente realidade.
Por seu pioneirismo em analisar, sob o viés sociológico, as grandes concentrações urbanas, seus estilos de vida e visões de mundo, Georg Simmel é usado neste livro como uma via primordial de interpretação. Ao longo dos ensaios, os conceitos e textos do filósofo e sociólogo alemão são tomados de empréstimo para melhor elucidar os tipos de individualismo e a natureza das interações sociais na cidade.
O olho, como ensina Simmel, por estar entre os órgãos especiais dos sentidos, realiza uma ação sociológica particular; por isso é através dele que se pode desvendar as múltiplas relações do indivíduo com a sua cidade e as demais pessoas com as quais estabelece algum tipo de convivência. Neste sentido, ora atentando para as estratégias políticas e sociais de segmentos particulares, ora tendo por desafio a compreensão de espaços delimitados geograficamente, dentre outros aspectos possíveis, os autores de Antropologia urbana assinalam realidades distintas de um mesmo cenário urbano.
Em outras palavras, por meio de um olhar que procura suprimir o senso comum, esses antropólogos evidenciam o que há de original e singular no cotidiano da cidade. Semelhante ao olhar estrangeiro de Fernando Pessoa - para lembrar mais uma vez o poeta português -, que ao se aproximar da janela de sua casa observa o estranho movimento de todos os dias. Diz ele, em seu poema "Tabacaria": "Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta./ Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,/ Vejo os entes vivos, vestidos que se cruzam,/ Vejo os cães que também existem,/ E tudo isso me pesa como uma condenação ao degredo,/ E tudo isso é estrangeiro, como tudo".
Alessandra El Far é doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e bolsista da Fapesp
Notícia
Jornal do Brasil