O presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, anunciou no dia 19 de maio novas metas de eficiência para o consumo de combustíveis em busca de reduzir a emissão de gases de efeito estufa. O governo calcula a redução em 900 milhões de toneladas de gás carbônico a partir de 2016. A medida integra o pacote de novas regras nos EUA para reduzir a dependência do petróleo e o lançamento de carbono na atmosfera.
As medidas anunciadas pelo presidente Obama no dia 19 de maio estabelecem novo padrão de eficiência no consumo de combustíveis fósseis para carros e caminhões leves. Em 2016, esses veículos deverão fazer, em média, 15,5 quilômetros por litro. O parâmetro atual é de 10,5 quilômetros por litro. Além de reduzir a emissão de carbono, os EUA deverão economizar 1,8 bilhão de barris de petróleo ao longo da vida útil dos carros que serão vendidos nos próximos cinco anos, afirmou o presidente. Carros e caminhões produzidos a partir de 2012 já devem seguir o novo padrão.
O governo Obama tem se mostrado ativo no assunto. No dia 5 de maio, a Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) dos EUA divulgou a minuta de sua Norma de Combustíveis Renováveis, a Renewable Fuel Standard (RFS), em que estabelece os índices de emissão de carbono de cada um dos combustíveis existentes hoje e também os do futuro, ainda não produzidos comercialmente. A proposta da EPA, que está em consulta pública, segue em grande parte o estabelecido pelo California Air Resources Board (CARB), a agência reguladora do mais rico Estado dos EUA. Em 17 de abril, a EPA afirmou que há evidências científicas de que os gases emitidos por veículos motorizados poluem a atmosfera e colocam em risco a saúde e o bem-estar da população - uma mudança em relação à postura da agência no governo Bush. A nova posição foi explicitada no documento em que a agência federal respondeu a questões feitas pela Suprema Corte dos Estados Unidos em abril de 2007.
Balanço das emissões do etanol de cana
Nas análises de ambas as agências, o etanol de cana-de-açúcar aparece como a melhor alternativa ao uso de derivados de petróleo para o transporte automotivo, em oposição ao etanol de milho, cuja produção e distribuição emitem mais gases estufa do que a economia gerada no consumo. As conclusões dos documentos da EPA e do CARB foram as primeiras notícias favoráveis ao etanol de cana nos últimos meses. A interpretação internacional a respeito das emissões do etanol brasileiro tornou-se desfavorável com base no argumento de que, por deslocar a floresta por conta da expansão da produção de cana-de-açúcar, seu balanço de emissões seria negativo, quando se levam em conta as emissões trazidas pela mudança do uso do solo.
A comunidade científica e os empresários da cana-de-açúcar contra-argumentam: o etanol de cana brasileiro se expande para pastagens e não resulta em mais desflorestamento. É nesse momento do debate que entram os resultados favoráveis das agências norte-americanas. Ainda assim, pesquisadores e produtores do Brasil questionam os números trabalhados pelos EUA. A vantagem ambiental do etanol brasileiro, dizem eles, é maior do que a apontada pelo CARB e pela EPA.
O tema mudança do uso do solo foi um dos principais na discussão da sustentabilidade da produção do etanol, objetivo do workshop realizado pelo Centro de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE) nos dias 14 e 15 de maio, em Campinas (SP). Em entrevista a Inovação, o pesquisador Arnaldo Walter, coordenador do programa de pesquisa em sustentabilidade do CTBE, contou ter informações de que a contestação apresentada pela União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) ao CARB foi aceita. A entidade dos empresários do setor sucroalcooleiro não confirmou o fato durante o evento, mas espera uma retificação.
Inovação acompanhou o workshop e conversou sobre o assunto com os especialistas presentes.
A divergência
Ambas as agências ambientais incluem em suas metodologias de cálculo do balanço de emissões os possíveis deslocamentos de cultivos de alimentos para dar espaço ao plantio de cana-de-açúcar. O CARB e a EPA consideram o impacto causado pela mudança direta - para eles, vindo da substituição da produção de grãos, por exemplo, por cana; e o impacto indireto, trazido pela mudança do uso do solo causada pelo deslocamento das culturas substituídas para áreas de cerrado e da Floresta Amazônica.
Pelos cálculos do CARB, o etanol de milho teria 70 gramas de gás carbônico equivalente por megajoule, que sobem para 100 gramas quando consideradas as emissões de carbono em todo o seu ciclo de produção e os impactos sobre o uso da terra. O etanol de cana tem inicialmente 27 gramas, porém as mudanças do uso da terra provocadas pelo cultivo da matéria-prima elevam a medida final para 70 gramas. Uma vantagem muito pequena, no entender de especialistas como Arnaldo César da Silva Walter, que, além de ser do CTBE, é professor da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) da Unicamp.
Não é só: a metodologia do CARB, aplicada aos biocombustíveis de segunda geração, resulta em balanço extremamente favorável a eles. A intensidade de carbono no etanol obtido da celulose de plantas não consumidas como alimento, por exemplo, fica em 5 gramas apenas. Quando incluído o impacto no uso do solo, chega-se a 20 gramas. Se o etanol celulósico for feito a partir de resíduos, a quantidade de carbono é de 21 gramas. É contra esses números que o etanol brasileiro compete, observou Isaías Macedo, pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe) da Unicamp. Em torno deles, a disputa agora é científica; e também comercial.
A disputa científica
Isaías Macedo é uma autoridade nacional e internacional no assunto balanço de emissões. É da Unicamp, já trabalhou para a Unica e é consultor para o tema. "Nunca quem comparou etanol de cana com etanol de milho achou que este fosse melhor. Esse conceito só foi reconfirmado, dentro do esperado", afirmou Macedo a Inovação. O produto brasileiro, no entanto, precisa e pode se qualificar na comparação com o etanol celulósico - que ainda não é produzido comercialmente. "Isso depende da resposta à seguinte questão: é razoável o cálculo das emissões em função das mudanças do uso da terra e do impacto indireto dessa mudança?", explicou.
Brasil não divulga pesquisas para comunidade internacional
Um dos problemas relacionados aos cálculos que estão sendo feitos por pesquisadores de todo o mundo é a falta de informações sobre a agropecuária nacional, sobre onde se planta cana no Brasil e sobre os recentes processos de modernização ocorridos nos canaviais e nas usinas. "Existe muita desinformação sobre onde se planta cana no Brasil, o que a cana desloca, diretamente, e quais são os efeitos indiretos", enumerou Arnaldo Walter, do CTBE. "Sabemos o que ocorre, mas não o demonstramos para a comunidade internacional, onde vale a palavra de quem publica", afirmou. Ele exemplificou: quando um pesquisador publica na Science a hipótese de que toda a expansão do cultivo de matérias-primas para biocombustíveis vai se dar sobre o cerrado lenhoso, isso passa a ser repetido como uma verdade, ainda que o dado apareça ali apenas como cenário. "Se não mostrarmos em um veículo científico tão bom quanto a Science que o cenário não é esse, o dado se transforma em verdade."
Essa falha também foi apontada por Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), no workshop do CTBE. "Temos de falar com o mundo, esse não é mais um debate relevante apenas para São Paulo ou Brasil. Se não entrarmos nesse diálogo, esse deixará de ser um assunto nosso para ser deles", alertou. Para complicar, poucos pesquisadores parecem estar dando atenção ao tema da sustentabilidade. A Fapesp lançou edital do Programa Bioen para financiar estudos nessa área e a demanda foi menor do que o dinheiro disponível. "Recebemos cinco ou seis projetos, apenas. O número de cientistas dedicados a esse assunto parece ser um gargalo para intensificarmos as pesquisas nessa área", contou o diretor científico. De acordo com ele, a Fapesp está estimulando a publicação de artigos em inglês sobre o tema, pois muito do conhecimento já produzido no Brasil só foi publicado em português. A agência financiou a tradução de artigos relacionados, por exemplo, ao estoque de carbono no solo em cultura de cana e temas correlatos tratados pela Revista Brasileira de Ciência do Solo, que não tem versão em inglês.
Carbono no solo
O estoque de carbono no solo é um requisito importante nos balanços de emissão. Um dos pesquisadores no assunto é Carlos Cerri, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Cena-Esalq), da Universidade de São Paulo (USP). Cerri é membro do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC, na sigla em inglês). Em sua palestra no workshop do CTBE, ele falou dos estudos que está coordenando sobre a quantidade de carbono que o solo armazena caso o produtor deixe no campo uma parte da palhada, composta de folhas e raízes.
O interesse do pesquisador é medir esse estoque, para que o resultado possa entrar na contabilidade do sequestro de carbono proporcionado pelo cultivo da cana. Resultados preliminares já indicaram que o solo armazena mais carbono quando a cana não é queimada e a palhada é deixada no campo. Outro dado positivo constatado nas pesquisas é a diminuição na emissão de metano, quando se compara esse processo de colheita com a colheita por meio da queima da cana. "Daí o estoque no solo ser importante no cálculo de emissões", afirmou Cerri.
Norte-americanos e europeus desconsideram a realidade brasileira
Em sua palestra no workshop, Isaías Macedo contou que o CARB considera o total da cana usada na produção de etanol no Brasil como tendo sido queimada. Também desconsidera a cogeração, em que o bagaço é utilizado para produção de energia elétrica na usina. Esse foi um dos pontos criticados pela Unica na contestação enviada ao CARB durante a fase de consulta pública do documento da agência californiana. A hidrelétrica é a principal forma de produção de energia elétrica no Brasil. Já se sabe que o sistema emite metano, um gás de efeito estufa mais deletério que o gás carbônico. A contabilidade das emissões do etanol muda se a metodologia leva ou não em consideração a diminuição do consumo de metano trazida pela cogeração. Como inserir isso na metodologia é um dos debates entre os cientistas.
Outra falha apontada por Macedo na metodologia do CARB é a conta para as emissões dos caminhões que levam a cana até a usina. A agência considera como emissão média de um caminhão aquela de um modelo padrão para a América Latina. Ocorre que a logística brasileira não usa caminhões convencionais e sim treminhões, que carregam muito mais cana para a usina em uma só viagem. O consumo de diesel, por isso, é menor e, consequentemente, também as emissões.
Macedo também falou da metodologia de cálculo de emissões utilizada na Alemanha. Nela, considera-se que a expansão da cana no Brasil se deu pela ocupação do cerrado lenhoso. Em relação ao cerrado comum, o lenhoso estoca mais biomassa. Se a expansão ocupa área antes de cerrado lenhoso, a contabilidade de emissões se altera contra o etanol de cana, pois mais biomassa - e mais carbono - estaria sendo removida. Ocorre que pesquisa com imagens de satélite feita pela Unica e pelo Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone), entidade especializada no estudo do agronegócio brasileiro e sua inserção no comércio internacional, coloca a remoção de vegetação arbórea causada pela expansão da cana em menos de 2% da cobertura. Os dados acompanharam a expansão de 2002 para cá, quando o fenômeno começou a acontecer - até ali, a área plantada estava estabilizada. Macedo garantiu que a maior parte da expansão se deu em áreas ocupadas por pastagem ou por culturas anuais.
Uma questão de metodologia
Outros pesquisadores ouvidos por Inovação no workshop do CTBE falaram pouco da resolução da EPA, que está em consulta pública. Laura Barcellos Antoniazzi, pesquisadora do Icone, contou que o CARB, da Califórnia, utiliza uma metodologia desenvolvida pelo Global Trade Analysis Project (GTAP), rede de pesquisadores de universidades, organizações internacionais e representantes de governos de diversos países. A rede realiza análises quantitativas sobre questões de política econômica internacional. O GTAP formou bases de dados de emissões de gases de efeito estufa e uso da terra. A coordenação do GTAP é do Center for Global Trade Analysis (CGTA), sediado no Departamento de Economia Agrícola da Universidade de Purdue.
No Brasil, o Icone utiliza a metodologia do Food and Agricultural Policy Research Institute (Fapri), formado por pesquisadores da Iowa State University e da University of Missouri-Columbia, dos Estados Unidos. Ambos os modelos são feitos a partir de equações e pretendem prever como a expansão ou retração da área de produção, a introdução de tecnologia e outros fatores impactam o preço dos produtos agrícolas. As metodologias, porém, são diferentes. Como já mencionado, o CARB não considerou, por exemplo, a cogeração de energia no balanço de emissões.
O Icone também não concordou com as elasticidades utilizadas pelo CARB. Elasticidade é um termo técnico da economia para "parâmetros que representam a sensibilidade entre variáveis econômicas, ou seja, quanto deve mudar uma determinada variável quando ocorrem alterações em uma outra variável", conforme definição do Icone. Por exemplo, o fator de conversão ou elasticidade que mediria a demanda de carne versus a área disponível para produção de carne não levou em consideração a realidade da pecuária brasileira. De acordo com Laura, a pecuária nacional responde muito mais rápido do que o considerado na metodologia do CARB a uma possível necessidade de redução da área de pastagem - porque ainda existe muita terra para ser convertida e também por ser possível produzir de maneira mais intensiva, simplesmente aumentando o número de cabeças de gado por hectare ou criando gado de forma confinada.
Na metodologia do GTAP, esse potencial foi desconsiderado "Podemos diminuir bastante o uso da terra e continuar produzindo a mesma coisa. É o contrário dos EUA", disse a pesquisadora. Também foram questionados os valores padrões usados pelo CARB para calcular o estoque de carbono em pastagens e florestas, pois este estaria sendo subdimensionado.
Em relação à proposta da EPA, Laura espera que os números sejam menos divergentes. "Essa ainda está em fase de consulta pública e não terminamos de fazer os comentários oficiais, mas esperamos oferecer muito mais contribuição do que em relação à proposta da Califórnia porque usamos a mesma metodologia da EPA, que é a do Fapri", disse ela. "A regulamentação nos EUA vai ser mais próxima do que a gente trabalha aqui, haverá menos conflito."
Inovação Unicamp