Adaptações evolutivas ocorridas no passado podem ter deixado a população de Campinas e de outras localidades do interior do Estado de São Paulo com maior propensão genética para acumular açúcares e gorduras no organismo e, consequentemente, predisposta a desenvolver doenças como obesidade e diabetes.
Essa é a conclusão de um estudo divulgado na revista Scientific Reports por pesquisadores do Instituto Brasileiro de Neurociência e Neurotecnologia (BRAINN), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) apoiado pela FAPESP na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A investigação foi coordenada por Iscia Lopes-Cendes, chefe do Laboratório de Genética Molecular da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, no âmbito da Iniciativa Brasileira de Medicina de Precisão (BIPMed https://bipmed.org/), também apoiada pela FAPESP.
“Mapeamos cerca de 900 mil marcadores genéticos distribuídos nos genomas de 264 pessoas da região de Campinas. Foi o primeiro estudo feito com esse nível de resolução no Brasil. A maioria dos estudos de ancestralidade feitos na população Brasileira utilizava não mais de 40 marcadores”, disse Lopes-Cendes à Agência FAPESP.
Os dados genômicos foram obtidos de voluntários sem doença específica, mas que representam a diversidade genética dos indivíduos atendidos no Hospital de Clínicas da Unicamp. A amostra foi concebida para explorar em detalhes a chamada “ancestralidade local”. A expressão não se refere à localidade geográfica, mas à localidade genômica. Isto é, os pesquisadores investigaram todas as regiões do genoma para saber a origem – se europeia, africana, indígena ou outras – de cada marcador. “Até realizarmos a pesquisa, não tínhamos ideia da enorme variabilidade na distribuição da ancestralidade local na população brasileira. Foi algo que nos surpreendeu”, contou Lopes-Cendes.
Devido à expressiva presença de descendentes de imigrantes da Europa meridional no interior paulista, principalmente de italianos, os genomas mapeados apresentaram um forte predomínio de marcadores de origem europeia, na faixa dos 80%, ficando os 20% restantes distribuídos, quase que meio a meio, entre as ancestralidades africana e indígena.
Porém, o que intrigou especialmente os pesquisadores e motivou o artigo publicado em Scientific Reports foi que os 10% de ancestralidade indígena forneceram o elemento mais relevante do ponto de vista de saúde pública: o gene PPP1R3B, associado à capacidade do organismo de acumular glicídios e lipídios, e, por isso, predisponente ao desenvolvimento de obesidade e síndromes metabólicas correlatas, como diabetes tipo 2.
“Fizemos a análise da distribuição da ancestralidade local. E descobrimos que ela era bastante homogênea na maior parte do genoma, exceto em uma região específica do cromossomo 8, onde se localiza o gene PPP1R3B. Nessa região, verificamos uma representação aumentada dos segmentos de origem indígena e uma diminuição significativa dos segmentos de origem europeia e africana. Isso demandou muito cálculo, muita checagem, foi um trabalho bastante pesado do ponto de vista matemático. Mas ele nos levou à conclusão de que existe realmente um desvio da ancestralidade local nessa região”, disse Lopes-Cendes.
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Para explicar o desvio, os pesquisadores formularam a hipótese de que, muito provavelmente, essa região do cromossomo 8 foi submetida a um processo de pressão seletiva no passado, voltada para melhor adaptar os indivíduos ao meio. Em uma época em que a comida era escassa, o gene PPP1R3B, relacionado com o acúmulo de glicídios e lipídios, daria uma vantagem evolutiva aos seus portadores, possibilitando que vivessem por mais tempo, se reproduzissem mais, e transmitissem essa característica à descendência.
Mas o que foi uma vantagem no passado se transformou em problema no presente, em um contexto de alta ingestão calórica e sedentarismo, agravados por hábitos como tabagismo e consumo exagerado de álcool.
“Essa informação é importantíssima do ponto de vista de saúde pública. Levantamos a hipótese de que, muito provavelmente, existe na população da região de Campinas – e estamos confirmando isso em populações de outras regiões do Estado de São Paulo também – uma predisposição genética aumentada para obesidade e suas complicações. Se eu fosse gestora do sistema de saúde pública da região, daria uma grande ênfase aos programas de prevenção de obesidade e diabetes, com equipes específicas para promover mudanças de hábitos alimentares, estimular a prática de exercícios físicos e alertar sobre os perigos do tabagismo e da ingestão de álcool”, disse Lopes-Cendes.
Medicina de precisão
Com esse objetivo, a pesquisadora tem apresentado os resultados da pesquisa em diferentes fóruns, abrindodiálogo com acadêmicos do setor de saúde, especialmente da área de epidemiologia. “Trata-se de um processo que chamamos de ‘ciência ou medicina de implementação’, ou seja, implementar na prática, principalmente na prática médica, aquilo que descobrimos com a pesquisa científica”, disse.
“Nosso objetivo é a aplicação dos resultados na medicina de precisão. Dadas as características genéticas da população brasileira, extremamente heterogênea, é provável que cada centro médico que queira implantar as práticas da medicina de precisão tenha que fazer esse tipo de estudo em sua população de interesse. Esse mapeamento é muito importante porque sabemos, na medicina, que a maior ou menor predisposição a esta ou aquela doença depende da presença de determinados genes em regiões específicas do genoma, ou seja, da ancestralidade local”, afirmou.
A pesquisa foi conduzida durante o pós-doutorado de Rodrigo Secolin, autor principal do artigo e bolsista da FAPESP.
O artigo Distribution of local ancestry and evidence of adaptation in admixed populations, de Rodrigo Secolin, Alex Mas-Sandoval, Lara R. Arauna, Fábio R. Torres, Tânia K. de Araujo, Marilza L. Santos, Cristiane S. Rocha, Benilton S. Carvalho, Fernando Cendes, Iscia Lopes-Cendes e David Comas, por ser acessado em www.nature.com/articles/s41598-019-50362-2.