Estudo foi publicado na revista Science; motivos dos vaivéns populacionais ainda não estão claros
A Amazônia pode ter perdido parte significativa de sua população alguns séculos antes da chegada dos europeus ao continente americano, de acordo com uma análise que tentou estimar como a vegetação amazônica flutuou ao longo do tempo.
Ainda não está claro o motivo das mudanças no passado da região, que é considerada um dos principais centros populacionais da América pré-colombiana. Antigas epidemias ou guerras entre os grupos indígenas também poderiam ter contribuído para um relativo despovoamento. Além disso, os dados levantados pela pesquisa não mostram mudanças tão claras nos séculos 16 e 17, embora isso fosse esperado, já que a população nativa foi dizimada pelas doenças e armas trazidas pelos europeus nesse período.
O estudo acaba de sair no periódico especializado Science, um dos mais importantes do mundo, e tem entre seus autores a brasileira Majoi Nascimento, que realiza pesquisas de pós-doutorado no Instituto de Biodiversidade e Dinâmica de Ecossistemas da Universidade de Amsterdam. Coordenada por Mark Bush, do Instituto de Tecnologia da Flórida, a equipe internacional responsável pela pesquisa conta ainda com cientistas da Costa Rica, do México e de outros países europeus.
Para tentar estimar as flutuações populacionais da Amazônia ao longo dos últimos 2.000 anos, os pesquisadores usaram camadas de pólen obtidas em 39 lagos espalhados pela região, num arco que vai do Equador e da Bolívia até as vizinhanças da ilha de Marajó.
Como cada tipo de planta produz grãos de pólen com características únicas, as camadas funcionam como um registro das mudanças da vegetação ao longo dos séculos. Os dados arqueológicos mostram que, desde o início da Era Cristã, a prática da agricultura e a construção de aldeias se intensificaram na região, em alguns casos com a produção de estruturas monumentais, como morros artificiais e grandes estradas. Estima-se que a população amazônica, no auge do processo, tenha chegado a 8 milhões de pessoas. Para que essas transformações acontecessem, os antigos indígenas precisaram transformar parte da mata em lavoura, o que deveria aparecer na composição do pólen dos lagos com o passar do tempo.
Tribos isoladas
Por outro lado, alguns pesquisadores acreditam que a área coberta pela floresta aumentou muito nos primeiros séculos após o contato com os europeus, por causa da grande mortandade dos grupos indígenas, que teria levado ao abandono de aldeias e lavouras. Esse fenômeno às vezes é aventado como explicação para uma queda considerável da concentração de gás carbônico na atmosfera no começo do século 17. Nesse caso, ao voltar a crescer, a floresta teria absorvido o gás, acentuando ainda mais uma fase de resfriamento da temperatura global (já que o dióxido de carbono, como também é chamado, esquenta a atmosfera). Se essa ideia estiver correta, o genocídio indígena na época colonial teria alterado até o clima da Terra.
No entanto, a nova pesquisa revela uma situação mais complexa. Majoi Nascimento explica que, além das análises de pólen, a equipe também levou em conta a presença de carvão, material que, na Amazônia, costuma ser sinal claro de ocupação humana (já que a mata, na região, em geral não pega fogo espontaneamente). No caso dos grãos de pólen, um indicador importante foi a presença do gênero Cecropia (popularmente, as embaúbas). São árvores de crescimento rápido, que precisam de ambientes ensolarados. Ou seja, a presença de muito pólen de embaúba pode indicar que uma área antes desmatada para o plantio ou para a construção de aldeias foi abandonada pelos seres humanos e está sendo retomada pela floresta.
Embora 80% dos 39 lagos abriguem sinais de ocupação humana antes da chegada dos europeus, o registro do pólen e do carvão, ao longo do tempo, mostra diferentes tendências. Na época em que deveria ter ocorrido o maior impacto do contato entre indígenas e invasores, entre os anos 1550 e 1750 d.C., o número de locais onde o pólen de floresta estava aumentando (ou seja, menos ocupação humana) era mais ou menos igual aos lagos onde o pólen florestal estava diminuindo (mais plantações, portanto). O efeito que seria esperado de um abandono dos locais pelos seres humanos aparece com mais força, numa área maior, entre os anos 950 e 1350.
“Sempre houve a ideia de que o pico populacional na Amazônia foi mais alto imediatamente antes da chegada dos europeus, mas alguns dados arqueológicos já indicavam que isso poderia não ser verdade. O nosso trabalho reforça isso”, diz Nascimento. “Mas é claro que isso não equivale a negar o impacto negativo do contato nas populações do nosso continente. A gente vê o peso desse impacto em outras regiões e mesmo na Amazônia, é inegável.”
“O artigo traz mais evidências que questionam a narrativa de que as populações amazônicas estariam em uma trajetória de ininterrupto crescimento até serem contactadas pelos europeus. Isso não deveria ser uma surpresa, já que ciclos de crescimento e colapso muito antes de 1492 são atestados em outras partes das Américas. O caso dos maias pode ser o exemplo mais óbvio”, diz o arqueólogo Jonas Gregorio de Souza, brasileiro que trabalha na Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona.
“Eu não concordo totalmente com as conclusões do artigo, mas acho bom que ele seja publicado porque é uma baita síntese de dados”, analisa Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. “Os resultados indicando a falta de desmatamento nos séculos 16 e 17 são, para mim, ambíguos.” Por outro lado, Neves aponta que os dados sobre o declínio por volta do ano 1000 da Era Cristã casam bastante bem com os estudos arqueológicos.
“Essa foi uma época de mudanças profundas, notáveis na Amazônia central, em Santarém [no Pará] e no estuário do Amazonas. Novos estilos cerâmicos surgem, a monumentalidade aparece em alguns lugares e desaparece em outros”, explica. Algumas dessas mudanças indicam possíveis conflitos, como o surgimento de aldeias fortificadas por valas e paliçadas e a diminuição da área desses povoados, o que ajudaria a explicar a diminuição populacional.
II
Estudo mostra como ouvido interno de dinos e aves evoluiu para que eles corressem e voassem
É sempre um deleite quando uma pesquisa desconstrói os retratos simplistas da evolução dos seres vivos que dominam a cabeça das pessoas.
É sempre um deleite quando uma pesquisa consegue desconstruir os retratos simplistas da evolução dos seres vivos que ainda dominam a cabeça das pessoas. Segundo essas visões esquemáticas e equivocadas, é como se os organismos sempre estivessem “em busca do progresso”; cada detalhe da anatomia e do comportamento teria uma função clara e específica na “luta pela sobrevivência”.
Balela. No mundo real, a coisa é muito mais complicada e interessante, como mostra um estudo feito por pesquisadores brasileiros sobre estruturas do ouvido interno sem as quais nenhum vertebrado terrestre, inclusive você, conseguiria andar ou correr por aí.
Refiro-me aos canais semicirculares, e só quem sofre de labirintite é capaz de atestar como o funcionamento deles é crucial. Esses três tubinhos interconectados, que lembram rosquinhas feitas de osso, abrigam um líquido, a endolinfa, e estão acoplados a áreas cheias de células que funcionam como sensores.
Conforme a cabeça de uma pessoa ou animal se mexe, o líquido também se movimenta dentro dos canais semicirculares, e os sensores celulares vão detectando as mudanças e permitindo ajustes finos no equilíbrio corporal.
Estudo mostra como ouvido interno de dinossauros e aves evoluiu para que eles corressem e voassem
[Primeiro autor da pesquisa, dr. Mario Bronzati do Laboratório de Evolução e Biologia Integrativa da USP de Ribeirão Preto; Mario foi financiado pelo CNPq e Fapesp durante a realização do trabalho que durou mais de 3 anos Divulgação]
É lógico que esse sistema é importantíssimo para bichos voadores, que precisam fazer mudanças rápidas de trajetória para todos os lados, para cima e para baixo -além de focar a visão durante esses movimentos complexos. Por isso, havia a ideia de que os canais semicirculares das aves teriam evoluído especificamente para resolver os problemas cabeludos do equilíbrio durante o voo.
Foi essa ideia que Mario Bronzati e seus colegas da USP de Ribeirão Preto e de outras instituições colocaram à prova, num estudo que acaba de sair na revista científica Current Biology. O veredicto? É melhor esquecer esse negócio de que os canais das aves surgiram “para o voo”, simplesmente porque coisas muito parecidas já existiam no crânio de alguns dos primeiros dinossauros, ancestrais das aves (elas, a rigor, não passam de dinos bípedes e emplumados que escaparam da extinção em massa de 66 milhões de anos atrás).
Com efeito, os canais semicirculares das aves são bem grandes, mas o tamanho das estruturas em certos dinos era comparável. O formato bem arredondado, típico dos canais nas aves, também não é exclusivo delas e, na verdade, parece estar mais ligado ao formato do crânio -crânios mais redondos “pedem” esse desenho para que tudo se encaixe, sem razões funcionais propriamente ditas.
Era absolutamente necessário ter canais grandalhões para voar? Não: os pterossauros, primos distantes de dinos e aves, não os tinham e ainda assim voavam sem o menor problema. Ao que tudo indica, foi uma necessidade muito mais geral- a de coordenação precisa entre movimentos dos olhos, da cabeça e do pescoço durante movimentos rápidos- a responsável por produzir o padrão que ainda se mantém nos animais emplumados de hoje. Correr, saltar de árvore em árvore ou voar são tarefas igualmente importantes para essas estruturas.
Uma última ironia: jacarés e crocodilos -parentes ainda mais distantes das aves e dinos, mas ainda assim membros do mesmo grande grupo- possuem canais bem distintos, que não necessariamente tinham o mesmo formato em seus ancestrais remotos. Em vez de estarem “parados no tempo dos dinossauros”, esses animais hoje semiaquáticos jamais pararam de evoluir. Eles e todo o resto da vida, é claro.
*Jornalista e escritor. Artigo na Folha de São Paulo inserida no Caderno Ciência, de 01/05/2021.