Pouca atenção se prestou à divulgação, em agosto último, do Atlas Ambiental do Município de São Paulo. Dentre as conclusões nele contidas, ao menos unia fere as pessoas sensíveis: 48% do território da capital já é impermeabilizado. Significa isso que se está asfaltando, cimentando, enfim, cobrindo a torra, o que nela impede o desenvolvimento de qualquer cobertura vegetal.
Esse estudo foi realizado pela municipalidade, em parceria com o Programa Biota da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado (Fapesp). Explicita os termos técnicos, aquilo que já é visível a olho nu. Quem sobrevoa a cidade vê uma São Paulo predominantemente cinza. Quem sai do marco zero, na Praça da Sé, e toma o caminho do leste, percorrerá quilômetros e quilômetros sem vegetação.
Nos últimos dez anos, mais de 5 mil hectares de matas foram destruídos. Deram origem a bairros residenciais periféricos. A maior parte deles irregular sob a ótica urbanística Ilegais, implantados por especuladores e, afinal, beneficiados pelas anistias.
Vasta população ocupa a região dos mananciais. O resultado é a poluição da pouca água que resta. Tão pouca, que o racionamento se tornou a regra, mas que não motiva o egoísmo a poupar. Continuam os passeios a se submeterem ao ritual da vassoura hidráulica, as mangueiras permanentemente ligadas a jogar a água - literalmente - pelo ralo.
Existe vínculo íntimo entre a redução do verde e a escassez de água. Todos sabem, mas parecem não se importar com isso.
A mesma pessoa que envenena uma árvore ou chama alguém para cortá-la, a pretexto de que suas folhas sujam a rua, é aquela que elimina qualquer nesga de terra em sua casa. Tudo precisa ser cimentado para não dar trabalho.
O comportamento micro se irradia para a macroconduta dendroclasta. Rondônia é a campeã do desmatamento ilegal.
Por força de migração de trabalhadores sem-terra e pela expansão das frentes de exploração criminosa de madeira. Porto Velho já se converteu numa nova Paragominas. A cidade que, desde os anos 90, está na dianteira do desmatamento nacional.
Não é apenas o Greenpeace, cuja contribuição ao zelo tende a ser ridicularizada por certos setores sob argumento de que é uma ONG alienígena. Também o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) estão a denunciai o fato.
Rondônia é o terceiro Estado que mais desmatou entre 2001 e 2002, só superado por Mato Grosso e Pará. Enquanto o Ibama autorizou desmate de 12230,26 hectares, imagens de satélite do Inpe indicam derrubada de 246.500 hectares, o que significa "apenas" 234.269,74 hectares a mais.
Os piratas do meio ambiente brasileiro são movidos a ganância. O dinheiro obtido com a venda da madeira ilegal sustenta pistoleiros que garantem a continuidade da extração, ainda que à balas. A ausência do Estado, seja no âmbito federal, seja no local, garante a esse tipo de gente a continuidade -sem empecilhos - dessa criminosa sanha.
Proliferam as serrarias fantasmas, muitas delas mantidas por madeireiros que já perderam seu licenciamento, mas continuam ilegalmente no lucrativo negócio. Também o preço médio por metro cúbico na extração chega a R$ 150, o que garante ao explorador um faturamento de R$ 50 mil.
Lá, como cá, as arvores não têm amigos. Aqui as motosserras funcionam todos os fins de semana, derrubando sem reposição. Nos Estados florestais não é diferente. Aquilo que a natureza permitiu se consolidasse em milhões de anos está sendo rapidamente destruído. Somente quatro Estados — Rondônia, Pará, Mato Grosso e Amazonas - desmataram juntos, entre 2001 e 2002, 15.166 quilômetros quadrados, ou seja, 67% do que se desmatou na Amazônia.
Quando surge uma voz internacional condenando essa prática e dizendo que não temos condições de zelar por um patrimônio universal, levanta-se logo quem a mande se calar. É a soberania, tão defendida em brados emocionais, mas que tem sido utilizada para o suicídio coletivo. Suicida-se uma população que não protege suas árvores e sua água.
Eliminação do verde aqui, destruição em massa lá. Insuficiente o grito de socorro da Terra, que já está nos castigando com evidente falta de chuva.
Parece que os homens vão impermeabilizando sua alma e desmatando o que resta de sua consciência ecológica.
José Renato Nalini é juiz e presidente do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo e autor de "Ética Ambiental" (Editora Millenium, 2003)
e-mail: nalini@apamagis.com.br
Notícia
Jornal da Tarde