Esta entrevista, originalmente, foi publicada em 2008, no https://revistapesquisa.fapesp.br/uma-politica-para-o-bem-envelhecer/. O texto a seguir é um compacto da entrevista, que é atualíssima. Thereza Christina Jorge
Criador das cidades amigas do idoso, Alexandre Kalache diz que tema é importante para o desenvolvimento do país. Agora, ele pede que a Prefeitura do Rio de Janeiro conceda ao bairro de Copacabana, na zona sul, o título de Cidade Amiga dos Idosos, como presente pelos 130 anos da Princesinha do Mar, em 2022.
Aos 62 anos, o médico e pesquisador em saúde pública Alexandre Kalache tem como projeto de vida envelhecer melhorando a vida dos idosos. Antes que tal idéia pareça puro oportunismo – dada a sua idade –, é preciso dizer que Kalache trata do assunto há mais de 30 anos. Foi ele um dos primeiros especialistas a enxergar o enorme desafio que os países em desenvolvimento terão pela frente se não começarem a pensar e agir sobre o envelhecimento da população imediatamente. “Trata-se de encarar o que poderá se transformar em um problema como uma oportunidade de torná-lo um importante tema da política de desenvolvimento”, alerta.Em 2050 o mundo terá 2 bilhões de idosos segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS). Mais de 80% deles estarão vivendo em países como o Brasil. Aqui a porcentagem de pessoas idosas irá de 9% a 18% em apenas 17 anos (2005 a 2022). Como adequar a sociedade a essa mudança demográfica brutal? “Começando a pensar e a planejar já”, responde Kalache. Sua percepção de que essa explosão se daria ocorreu em 1976, no período em que fazia mestrado em saúde social na Universidade de Londres. Posteriormente, ele seguiu para o doutorado na Universidade de Oxford, onde foi professor assistente.Kalache é médico formado pela então Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Durante 4 anos foi instrutor de clínica médica e nos meados dos anos 1970 partiu para a Europa, onde ficou 33 anos, os últimos 13 dirigindo o Programa Global de Envelhecimento e Saúde da OMS. Os dois filhos (um nascido no Rio e a filha na Inglaterra) e uma neta cresceram e ficaram em Londres. No mês passado, Kalache deu por terminado seu ciclo na OMS e agora trabalha como assessor para envelhecimento global da presidência da Academia de Medicina de Nova York. Tem a ambição de criar um Centro Internacional de Políticas para o Envelhecimento no Rio para continuar a pesquisar e sugerir melhorias na qualidade de vida dos idosos. No dia seguinte ao seu retorno ao Brasil, no amplo apartamento da mãe, Lourdes Kalache, no coração de Copacabana, bairro onde nasceu e foi criado, ele falou à Pesquisa FAPESP. O senhor voltou ao Brasil em definitivo para criar o Centro Internacional de Políticas para o Envelhecimento?
Não. Vou me dividir entre Nova York e Rio com a intenção de estabelecer aqui esse centro, muito voltado para o envelhecimento como um tema de desenvolvimento. Ou seja, como o Brasil e países semelhantes, que tiveram um envelhecimento rapidíssimo se comparado com o que foi experimentado nos países mais desenvolvidos, podem enfrentar os desafios decorrentes. O que isso tem a ver com o trabalho em Nova York?
O centro estará ligado à Academia de Medicina de Nova York e à Universidade de Londres. A idéia é formar um grupo de organizações não-governamentais, governamentais, acadêmicas e até de iniciativa privada para poder, debaixo desse guarda-chuva, criar um consórcio voltado para o estabelecimento de políticas pautadas no conceito de envelhecimento ativo, que criamos na OMS. Como, por exemplo, o movimento global das cidades amigas dos idosos. O Programa Cidade Amiga do Idoso foi a grande e última atividade que desenvolvi dentro da OMS. E quero dar continuidade a ele mesmo fora da OMS. Agora é a hora de executar. Por exemplo, a governadora do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius, quer fazer de seu estado um estado amigo do idoso. Vou passar uma semana lá para discutir o desenvolvimento de políticas que busquem fazer do Rio Grande do Sul talvez um estado modelo. Para isso, uma força-tarefa envolvendo todas as secretarias de Estado já foi criada. Percorrerei todo o estado, discutirei com grupos acadêmicos, organizações não-governamentais e com o setor privado. E, principalmente, organizarei grupos com os idosos gaúchos para que eles nos contem quais as dificuldades, sugestões e expectativas. Será um processo de baixo para cima. De acordo com o Guia Global da Cidade Amiga do Idoso, da OMS, hoje há 35 cidades dentro do programa.
Sim, começamos com 35, mas esse número está crescendo – somente em janeiro várias cidades da Europa e do Japão se incorporaram ao programa. Agora, com o Rio Grande do Sul, o número vai crescer porque começaremos com 12 cidades gaúchas como piloto para depois ampliar para todo o estado. E a idéia desde o início era mesmo essa. Para entender como fizemos esse projeto é preciso contar a história pelo começo. Na minha infância e adolescência, Copacabana era um bairro de jovens. Nasci na maternidade Arnaldo de Moraes, aqui perto, que hoje é virtualmente um hospital geriátrico, o São Lucas. Ou seja, ao longo do meu tempo de vida, 62 anos, Copacabana se transformou de um bairro com muita criança em um bairro de idosos. Hoje já não nascem mais crianças em Copacabana. A grávida daqui terá de dar à luz em Botafogo. Hoje Copacabana tem mais idosos, proporcionalmente, do que o Japão ou a Suécia. Quem são eles? Pessoas como minha mãe, de 89 anos. São os que vieram para cá quando Copacabana se urbanizou e se desenvolveu nos anos 1920, 1930. Mas explodiu nos anos 1940 e 1950. Todos queriam morar em Copacabana.E não saíram mais daqui.
Os filhos foram embora e os netos nem pensam em Copacabana – para eles o bairro é um corredor, eles “passam” por aqui. Ficaram os idosos. E ficaram porque aqui sempre existiu uma grande concentração de serviços. Quando meu pai morreu, minha mãe me perguntou, “Você acha que eu devo mudar daqui?”. Eu falei, “Pense bem antes de fazer essa mudança, porque aqui é onde você está familiarizada, ambientada, você tem tudo na porta, a farmácia, o táxi, os restaurantes, os bancos”. Além do mais, o velho ativo vai para o calçadão, se sociabiliza, é agradável. Mas, note: para cada idoso ativo do lado de fora, temos dois ou três com dificuldade de andar, com problemas de doenças não-preveníveis, muitas vezes mal gerenciadas, malcuidadas porque os próprios médicos com freqüência não têm uma formação adequada, embora existam cada vez mais geriatras trabalhando em Copacabana. De cada três habitantes, um tem mais de 60 anos, o que é muito alto. Higienópolis, em São Paulo, tem esse perfil. Há uma sigla para isso. São os NOEPs, ou seja, naturally ocurring eldery population. São populações que por uma série de fatores, como essa de Copacabana, vão concentrando idosos de uma forma natural. Não é por política, mas por acidente. Daí a escolha de Copacabana ser a primeira cidade amiga do idoso?
Houve um Congresso Internacional de Gerontologia em junho de 2005, no Rio, e os organizadores me convidaram para fazer a conferência de abertura. Mas pediram uma idéia nova, para chamar a atenção da mídia. Foi aí que pensei em fazer um estudo piloto que é Copacabana Amiga do Idoso e lancei isso no congresso. Deu certo. Saiu no Fantástico, Jornal Nacional, Globo Repórter e nos jornais. Como falei para uma audiência internacional, depois disso as pessoas começaram a me perguntar, “Por que só Copacabana? Por que não Buenos Aires, Genebra, Xangai?” Eu respondia, “E por que não?”. Rapidamente recrutamos na OMS essas 35 cidades, que foram as que fizeram parte do estudo piloto. Fechei com 35 porque queria terminar o projeto antes de sair daOMS. E esse já era um número grande para trabalhar. Fechamos com Xangai, Tóquio, Moscou, Londres, Nova York, Melbourne, Genebra, Liverpool, Nova Délhi, Nairóbi, Istambul, Buenos Aires, Cidade do México, Rio… Os relatórios do estudo se constituíam em quê?
Fizemos primeiro uma pesquisa básica para ver quais são, de acordo com a literatura especializada, os elementos principais que fazem com que um ambiente possa ser mais amigo do idoso. Coisas como moradia, transporte, participação cívica, acesso a informação, acesso a serviços médicos, acesso a serviços sociais, engajamento na vida pública, questão de comunicação e de adaptação na vida da informática para uma população envelhecida. Pegamos estes oito temas e realizamos estudos qualitativos, de grupos focais e com idosos mais jovens, com idosos mais idosos, dos diversos níveis socioeconômicos, em grupos só de mulheres, só de homens, mistos, e depois com prestadores de serviços e com cuidadores do idoso. Depois fizemos outro estudo, usando a mesma metodologia, em torno dos oito temas, que foram aplicados nas 35 cidades. Quando os relatórios retornaram, juntamos todos para encontrar os denominadores comuns do que se pode fazer para um meio urbano se tornar mais amigo do idoso. O senhor já sente alguma dessas melhorias em Copacabana?
Há duas coisas imediatas que foram feitas com base no estudo. A primeira foi a criação de um posto policial, 24 horas por dia, 7 dias por semana, dedicado ao idoso. É para resolver problemas de segurança, como as pequenas infrações em geral. A segunda iniciativa, também baseada no Copacabana Amiga do Idoso, será a inauguração em março de um posto de saúde, também aberto 24 horas por dia, 7 dias por semana, perto do metrô, numa área central. Essas reivindicações foram dos próprios idosos?
Também. Em Copacabana hoje se um idoso tem um problema de saúde urgente as pessoas não sabem o que fazer. Geralmente acaba sendo levado para algum pronto-socorro e, às vezes, quando chega lá leva uma bronca, porque PS é lugar para emergências. Queremos fazer agora um Centro de Saúde Amigo do Idoso, com base num outro estudo da OMS, que desenvolvi nos últimos 5 ou 6 anos. Normalmente nos centros de saúde não há um lugar adequado para o idoso esperar, às vezes nem onde sentar, mal tem banheiro. Não raro ele chega cedo, recebe uma senha e, depois de algumas horas, a recepcionista grita, sem o menor respeito, avisando que o atendimento já acabou.Isso depois de 5, 6 horas de espera. Os letreiros são pouco visíveis, tudo é ruim. É como alguns aeroportos que não estamos familiarizados e não sabemos para onde ir. De repente, uma voz anuncia alguma coisa que você não ouve bem. A gente acaba se irritando. Mas o idoso, não. Ele se sente diminuído, humilhado, culpado de não estar conseguindo entender esse sistema. Nosso objetivo é tornar esse sistema mais amigo do idoso por um lado. Por outro, é preciso treinar o trabalhador de atenção primária, desde o médico de família até o enfermeiro e nutricionista, de um modo que eles ajam de modo mais adequado. Este é um grave problema da transição demográfica. Os trabalhadores da saúde continuam sabendo tudo sobre atenção infantil e muito pouco sobre usuários mais velhos. A aplicação do programa leva as diferenças sociais em conta?
Deste prédio onde estamos, em Copacabana, é possível ver a favela de Pavão-Pavãozinho muito perto da gente. Todos os contrastes e as contradições do Brasil estão presentes aqui no bairro. Em 150 metros em linha reta é possível ir ao coração da favela, onde há uma das grandes bocas de tráfico do Rio. O Rio está cercado de favelas e o estudo foi feito também com o morador favelado. Vale para todos.É possível baixar aqui o Guia Global da Cidade Amiga do Idoso