Cinqüenta anos depois que o célebre cientista brasileiro Maurício da Rocha e Silva (1910 — 1983) revelou a importância da bradicinina no controle da pressão arterial, pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP descobrem uma outra substância que também atua diretamente no sistema cardiovascular e aparenta ser ainda mais eficaz no combate à hipertensão: a hemopressina. As pesquisas ainda estão em fase inicial, mas se essa hipótese for confirmada haverá uma mudança nos estudos sobre a doença, causa principal de 50% de problemas cardiovasculares em todo o mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo a OMS, a hipertensão é um dos cinco fatores que causam as dez doenças crônicas que mais matam no planeta. No Brasil, de acordo com pesquisa realizada pela Liga de Hipertensão do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, cerca de 18 milhões de adultos são hipertensos — o equivalente a 10% da população brasileira.
A descoberta da hemopressina deu-se por acaso, durante os experimentos realizados para a tese de doutorado da bióloga Vanessa Rioli, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), orientada pelo professor Emer Suavinho Ferro, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. Nela, Vanessa busca confirmar a idéia de que, inativando duas enzimas específicas, elas podem servir como "ímãs protéicos" que "pescam" peptídeos, ou seja, fragmentos de proteínas.
Quando esse experimento foi realizado em cérebro de ratos (é no cérebro onde há maior diversidade de peptídeos), foi identificada uma série de compostos, dentre eles a hemopressina. "A hemopressina desperta um interesse muito grande dos cientistas porque ela é um peptídeo que tem atividade biológica. Todos os experimentos realizados até agora levam a crer que ela atua dentro do sistema cardiovascular, reduzindo a pressão arterial dos animais que têm a pressão elevada", ressalta o professor Emer Ferro, que também é coordenador do projeto Bases Moleculares e Celulares da Biologia das Peptidases, financiado pela Fapesp.
Segundo Ferro, mais importante do que a descoberta da hemopressina é o método que eles desenvolveram e estão patenteando para identificar uma série de compostos com potencial biológico. "Nós usamos substratos próprios de animais e não substratos sintéticos. É a primeira metodologia já feita usando enzimas inativas como isca", destaca Vanessa. Para ela, o resultado foi uma grande surpresa: "Nunca pensei que um peptídeo teria efeito biológico. Aposto que, após todos os testes, haverá uma repercussão na área médica".
Os cientistas estão otimistas em relação à eficácia da hemopressina no combate à hipertensão em seres humanos, embora as experiências ainda estejam sendo feitas apenas no sistema cardiovascular de ratos — e não de pessoas. Todo esse otimismo não é à toa: a hemopressina vem apresentando inúmeras vantagens em relação à bradicinina. Uma delas é que a substância não causa efeitos colaterais. Outro diferencial: em animais anestesiados, a hemopressina tem uma potência em torno de cem vezes maior que a da bradicinina e, em animais acordados, a potência da hemopressina é dez vezes menor que a da bradicinina. Mais uma vantagem: a hemopressina não causa taquicardia reflexa, como ocorre com a bradicinina.
Além da hemopressina, foram descobertos outros 14 peptídeos. Do total, 13 são novos, ou seja, ainda não tinham sido descritos. Isso significa que, até o final das análises farmacológicas de todas essas substâncias, pode ser que haja outros peptídeos com atividade biológica. "A descoberta da hemopressina é mais uma peça dentro desse quebra-cabeça. Ainda não sabemos se ela atua fisiologicamente, mas o que se imagina é que ela pode ser mais uma peça nesse sistema complexo que é o sistema que regula nossa pressão arterial", diz Ferro.
Origens genéticas — Para se compreender a real importância dessa descoberta, é preciso saber como a bradicinina e a hemopressina atuam no sistema cardiovascular. Sabe-se que a bradicinina e a angiotensina são dois peptídeos envolvidos com a regulação da pressão arterial: a primeira causa vasodilatação e, conseqüentemente, hipotensão arterial, enquanto a segunda provoca vasoconstrição, ou seja, hipertensão. Existe uma enzima que controla os níveis desses dois peptídeos, que é a enzima conversora de angiotensina (ECA). Essa enzima converte a angiotensina I, hormônio produzido na circulação sanguínea, em angiotensina II, enzima tida como a maior responsável pela hipertensão. Medicamentos como o Captopril impedem que a ECA quebre a angiotensina I. "Quando faz isso, o remédio previne a geração do peptídeo que é hipertensor e previne a degradação da bradicinina, que é hipotensora, mantendo o sistema sob controle. Mas o Captopril é só uma terapêutica, ele não cura a hipertensão", explica Ferro.
Além de não curar a doença, esse medicamento causa vários efeitos colaterais, como impotência, infarto do miocárdio, alteração do humor e dificuldades de concentração. Resultado: a maioria das pessoas acaba interrompendo o tratamento. "Existe um campo enorme de pesquisa nessa área para que se consiga ter medicamentos mais eficazes, que não tenham efeitos colaterais indesejáveis. Se a hemopressina vier a se tornar um possível medicamento, talvez possamos obter esse resultado. A nossa idéia, hoje, é que se consiga ter uma dose menor de Captopril, que fique abaixo do limiar de causar efeitos colaterais indesejáveis. Não a hemopressina pura e simples, porque ela é um peptídeo que é degradado muito rapidamente, o que faz com que o efeito dure uns 15 segundos", afirma o professor.
Apesar de ambas atuarem sobre o sistema cardiovascular, a bradicinina e a hemopressina não pertencem à mesma família, pois têm origens genéticas completamente diferentes. Enquanto o precursor protéico da bradicinina é o cininogênio, o da hemopressina é a hemoglobina. "Em relação aos peptídeos derivados da hemoglobina, até onde conseguimos averiguar, a hemopressina é o único peptídeo com atividade biológica no sistema cardiovascular derivado da cadeia alfa de hemoglobina", diz Ferro. "Todos nós temos quilos de hemoglobina. Se esse peptídeo está sendo produzido naturalmente no nosso organismo, sabemos que não haverá nenhum efeito toxicológico, apesar de não termos começado os testes clínicos."
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Jornal da USP