Notícia

Gazeta Mercantil

Água e solo - uma relação de vida (1 notícias)

Publicado em 24 de julho de 1996

Por Paulo Afonso Romano*
Secas e enchentes sempre foram considerados fenômenos naturais com os quais se tinha que conviver, contabilizando-se os prejuízos à conta do elemento natureza. Só quando esses fenômenos passaram a interferir mais diretamente na vida do homem é que se procuraram soluções com vistas a reduzir os efeitos, sem buscar as causas dessas interferências. Um exemplo de tal inversão de valores é a redução da disponibilidade da água. De 1950 a 1991, essa disponibilidade foi diminuída em três vezes no Brasil. Tal redução, medida em m3/habitantes/ano, é devida a três causas diretas: como conseqüência do chamado progresso material, aumento da população, redução pura e simples ou desaparecimento de fontes de água (rios, córregos, lagos, etc), pela ação predatória da atividade humana. Essa a parte quantitativa. E o que falar da queda da qualidade da água? Onde existe água potável perto de nós? Onde? Nesse aspecto, voltamo-nos para o espaço rural, onde acontece maior precipitação do volume das chuvas e onde a água tem sido objeto de maior demanda por parte dos usuários. O que acontece com essa água, que abastece os mananciais e nascentes, os quais por sua vez vão abastecer o meio rural e as cidades? Partindo do princípio de que o ciclo hidrológico não sofreu mudanças - as chuvas continuam a cair nas mesmas quantidades médias de décadas atrás -, a dedução é que no comportamento do homem encontram-se as causas do preocupante declínio da quantidade e qualidade dos recursos hídricos. E os diagnósticos deixam claro que na desarmonia da relação solo x água está a origem da redução na quantidade de água que alimenta os cursos d'água durante o ano. A compactação do solo, por exemplo, muito comum nas áreas de pastagens degradadas (o gado é considerado um dos elementos que mais compactam o solo), impede que as águas das chuvas sejam absorvidas pelo solo, não alimentando os mananciais superficiais e os subterrâneos. Impedidas pela compactação de serem absorvidas, as águas, vão chegar aos rios com volumes que transcendem a capacidade de vazão, provocando enchentes. Outra causa de compactação é o uso excessivo de certos implementos agrícolas (grade, por exemplo), que pulverizam e compactam o solo. As águas não absorvidas também levam consigo nutrientes da terra, via erosão. Para ter-se uma idéia dos prejuízos, só na bacia do rio São Francisco mais de US$ 1 bilhão são perdidos anualmente em nutrientes em razão de as águas correrem na superfície, causando erosão. Carregando esses nutrientes, são levadas cerca de mil toneladas de solo agrícola por ano. E solo é um dos mais importantes patrimônios de uma nação. Mas o impacto não pára aí. Para onde vão os nossos solos e os nutrientes? Para o fundo dos rios e lagos causando o que se chama assoreamento, antecedido geralmente de enchentes. Outra perda: de um lado, o desequilíbrio para os animais que vivem na água (ictiofauna), de outro, redução da navegabilidade do rio. E, no caso extremo, aquilo que muitos de nós conhecemos: no lugar de uma lagoa, um monte de areia; ou no lugar de um riacho onde se podia nadar quando criança, apenas um filete de água, como uma mensagem mista de esperança e de agonia - "ainda posso viver?" Eu rezo na cartilha da esperança e do otimismo, mas nada acontece por acaso. Não há mais lugar para o comportamento predatório, alimentado pela falsa "cultura da abundância", quando agíamos como se a natureza resistisse a tudo, como se seus recursos não acabassem nunca. Em sentido prático, a água é finita extremamente vulnerável, como temos vivenciado. Essas práticas agrícolas inadequadas, aliadas à derrubada indiscriminada da cobertura flores-, tal, principalmente das matas ciliares, deixam as margens dos rios sujeitas à erosão. Em casos extremos, chega-se ao processo de desertificação. Manchas de pequenos desertos já são conhecidas no Brasil. No Nordeste, existem 50 mil quilômetros quadrados de área desertificada, correspondente ao tamanho dos estados de Alagoas e Sergipe, com graves reflexos sobre a vida de aproximadamente 400 mil pessoas. Mas esse fenômeno não está restrito apenas ao Nordeste. Na região do Alegrete, na bacia do Prata, Rio Grande do Sul, existe uma grande área já desertificada, e no Rio de Janeiro os desmatamentos começam a ameaçar as margens do rio Paraíba do Sul. Se o diagnóstico parece catastrófico, devemos lembrar que as forças que destroem têm a mesma origem daquelas que reconstroem - é o nosso comportamento. Se decidirmos, portanto, mudar nossas atitudes, as mudanças virão. Existem alternativas, tecnologias para todo começo e recomeço. Como exemplo, e para estimular a busca, encontramos já em uso dignificantes práticas para reduzir perda de solo e de água: - plantio direto, sem revolvimento do solo, que evita a erosão causada pela água e pelo vento; - técnicas de conservação do solo, como terraceamento e plantio em nível, bastante eficazes quando a abrangem toda uma microbacia; - recomposição das matas ciliares (que margeiam os cursos d'água) e das matas no topo dos morros; - reflorestamento em geral e em áreas de pastagens degradadas, com posterior manejo adequado dos pastos e da floresta; - rotação de pastagens e de culturas entre si; - subsolagem (quebra da estrutura da camada compactada do solo). Como se pode observar, não se trata de ação ambiental num sentido autônomo. A estratégia, o caminho, é a inserção da dimensão ambiental na atividade econômica. E o que é mais importante: combinando a conservação dos recursos naturais com a melhoria da renda do produtor. Sem nenhum complicador, é a isso que chamamos desenvolvimento sustentável. Não se pode falar em aumentar a quantidade de água (de "produção" de água) sem referir-se a manejo dos solos. O solo é "armazém" e filtro da água. Lenta e generosamente ele a libera durante o período seco do ano para que ela corra e alimente vidas ao longo do seu curso. Por tudo isso é que a Secretaria de Recursos Hídricos (SRH), do Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal (MMA-RHAL), entende como indissociável sua atuação em conjunto com o Ministério da Agricultura e organizações representativas do setor rural, na busca do desenvolvimento sustentável desse estratégico setor da vida nacional. * Secretário de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal.