Um novo estudo com coautoria de brasileiros, publicado na revista Science no dia 4 de outubro, ligou o cultivo de fungos por formigas cortadeiras ao meteoro que matou os dinossauros.
Muitos brasileiros estão familiarizados com as içás ou tanajuras, as rainhas aladas das formigas saúvas (ou cortadeiras) que saem em revoada quando a seca dá lugar às chuvas. Em algumas localidades, seus abdômens são apreciados como iguarias e fonte de proteína.
O que muitos não sabem é que essas modestas formigas trouxeram uma inovação bem antes dos humanos: a agricultura. As folhas que cortam não são comidas pelas saúvas, elas são levadas para câmaras especializadas de seus formigueiros, onde estão fungos — estes sim cultivados com as folhas como adubo e fonte de alimento para os insetos trabalhadores.
Há 247 espécies de formigas cultivadoras de fungos. Juntas elas cultivam mais de uma espécie de fungo, em quatro grupos distintos. As cortadeiras se concentram em um grupo de 52 espécies que inclui as saúvas. Com a agricultura, os formigueiros das saúvas “atingiram os níveis mais altos de complexidade organizacional encontrados em animais não humanos”, afirmam os cientistas.
A descoberta é completamente baseada na genética. Os pesquisadores analisaram 625 genes (chamados de “elementos ultraconservados”, por mudarem pouco com o tempo) em 475 fungos — 288 fungos cultivares das formigas e fungos livres aparentados. Nas formigas, foram analisados 1.934 genes de 276 insetos, 208 dos quais eram formigas cultivadoras de fungo. Assim, com a árvore genealógica dos dois lados, conseguiram estimar a idade da parceria entre os dois organismos muito distintos de cultivadora e cultivado. A agricultura de fungos não surgiu nas formigas apenas uma vez, mas até quatro vezes, descobriram.
A relação com o meteoro dos dinossauros
Levando em conta o tempo que leva para o DNA mudar, os cientistas calcularam que a parceria começou há 66,65 milhões de anos, com margem de erro de 13,28 milhões de anos mais cedo ou mais tarde. Esta data estimada central coincide com o tempo em que um meteoro “colidiu com a Terra, causando tempestades de fogo por dias ou semanas, e interrompeu a fotossíntese por muitos meses mais, durante os quais os fungos se proliferaram e extinções em massa globais aconteceram”, afirmou o estudo.
A extinção em massa afetou especialmente animais grandes, abrindo oportunidades tanto para pequenos vertebrados que deram origem a mamíferos e aves quanto para os insetos. Eles tinham especial vantagem se pudessem sobreviver se alimentando de detritos, matéria orgânica em decomposição ou do que vive dela, os fungos. Um indício favorável a isso é que as formigas mais próximas das que viraram cortadeiras também se alimentavam de outros animais pequenos que por sua vez comiam detritos.
“A origem de formigas cultivadoras de fungos era relativamente bem entendida” até agora, afirmou André Rodrigues, um dos autores e professor da Universidade do Estado de São Paulo em Rio Claro. “Mas um cronograma mais preciso desses micro-organismos estava em falta. Nosso trabalho dá a menor margem de erro até agora para a emergência dessas linhagens fúngicas, antes consideradas mais recentes”.
Com o surgimento da Amazônia e outras florestas nas Américas nos sete milhões de anos seguintes, a oportunidade para as formigas cortadeiras estava posta, e elas responderam se diversificando em várias espécies.
Assim como as árvores evoluíram frutos que atraíssem aves e mamíferos que os comiam e, “em troca”, dispersavam as sementes, alguns dos fungos cultivados por formigas desenvolveram estruturas nutritivas como “recompensa” pelo cultivo, que não deixa de ser uma forma de sobrevivência. Essas estruturas se parecem com pequenas uvas, cheias de açúcar.
A semelhança entre a agricultura das formigas e a humana
A parceria formiga-fungo simplesmente faz sentido: as formigas dão um ambiente afastado da luz do sol e úmido, propício para o crescimento de fungos. Existem relações entre formigas e fungos que não são tão especializadas e obrigatórias como a das saúvas com seus cultivares. São relações acidentais ou de conveniência, que demonstram como a agricultura das formigas pode ter começado.
Por exemplo, os cientistas acharam um parente de fungos cultivados vivendo no formigueiro de uma espécie nativa do Brasil que também é aparentada às cultivadoras, mas não faz cultivo.
“Antes da origem da agricultura das formigas, os ancestrais dos cultivares dos fungos provavelmente eram transportados pelas formigas para pilhas de ‘lixo' e paredes de detritos dentro ou fora de seus ninhos”, como é o caso da formiga brasileira, afirmam os autores. Esse transporte é bom para o espalhamento do fungo, ainda que tratado como “lixo” pelas formigas — como no caso das sementes espalhadas por fezes de pássaros.
Os cientistas lembram que essa aliança de conveniência e casual também explica como os seres humanos domesticaram plantas para seu próprio consumo, como as cucurbitáceas (família dos pepinos), o tomate e outras, porque elas apareciam nas clareiras abertas pela intervenção humana, ou na nossa pilha de lixo. A agricultura humana surgiu há 12 mil anos — a agricultura das formigas é cinco mil e quinhentas vezes mais velha.
No começo, os fungos não eram uma parte essencial da dieta das ancestrais das saúvas. Mas “a pressão exercida pelo impacto do meteoro pode ter transformado essa relação em um mutualismo obrigatório, no qual esses fungos vieram a depender das formigas para alimentação e reprodução, enquanto ao mesmo tempo as formigas dependem exclusivamente do fungo como fonte de alimento”, disse Rodrigues.
“É como se o fungo fosse o estômago externo das formigas”, afirmou Mauricio Bacci Júnior, também professor da UNESP Rio Claro e coautor do trabalho. Essa digestão feita pelo fungo sobre a matéria orgânica em decomposição é de grande interesse dos cientistas, pois pode dar em uma forma de degradar o plástico.
Também importante para a origem das saúvas foi a expansão do Cerrado, entre 34 e 27 milhões de anos atrás. Neste período, o planeta esfriou, favorecendo biomas resistentes a períodos de seca como este. A estação seca do Cerrado é uma má notícia para os fungos, que preferem umidade, e assim o fungo cultivado pela saúva encontrou seu refúgio no formigueiro, estreitando sua relação com as pequenas fazendeiras.
Eli Vieira