Notícia

Arquitetura & Urbanismo

Agente transformador

Publicado em 01 maio 2008

Por Éride Moura

Com a escolha do seu nome, no final de março, para o cargo de relatora especial das Nações Unidas para o Direito à Moradia, a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, de São Paulo, vence mais uma importante etapa de sua movimentada trajetória profissional. Referência nacional na área de habitação, ela consegue aliar, há quase 30 anos, a atividade de docência e pesquisa a uma intensa prática profissional no campo de consultoria em política urbana, tanto no Brasil quanto no exterior, e ainda junto a órgãos internacionais como o UN-Habitat (Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos), e o Banco Interamericano de Desenvolvimento.

Arquiteta e mestra pela FAUUSP, doutora pela Universidade de Nova York, professora do mestrado da FAU da PUC de Campinas (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica em Campinas, SP), e autora de três livros sobre urbanismo (A Cidade e a Lei, Studio Nobel/Fapesp; O que é a Cidade, Brasiliense; e Folha Explica São Paulo, Publifolha), Raquel Rolnik teve uma brilhante passagem pela Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades entre 2003 e o final de 2006, onde foi responsável pela implementação do Estatuto da Cidade, uma das mais importantes iniciativas brasileiras na área do urbanismo e da habitação. Ainda em maio de 2008 deve assumir o cargo de relatora especial da ONU, para o qual foi escolhida por unanimidade, em lista tríplice, pelos representantes dos governos signatários do Conselho dos Direitos Humanos.

A urbanista brasileira é a segunda titular dessa relatoria criada em 2002, e substitui o indiano Miloon Khotari, que ficou por dois períodos. Nesta entrevista concedida à AU, Raquel Rolnik discorre sobre a evolução do direito à moradia no Brasil e analisa o trabalho do Ministério das Cidades. Sobre sua nova missão, expressa o desejo de não se limitar à apuração das denúncias de violação dos direitos à moradia, mas imprimir uma ação propositiva à relatoria, de maneira a resolver os conflitos por políticas públicas capazes de indicar as diretrizes para ações realmente efetivas.

aU - Quando teve início sua participação nos movimentos sociais pelo direito à moradia?

RAQUEL ROLNIK - Desde a FAUUSP. Nos anos 1970, a professora Ermínia Maricato nos levou à periferia e nos apresentou ao problema dos loteamentos clandestinos irregulares da zona Sul de São Paulo. Isso ainda no período da ditadura. Em 1978, meu trabalho de graduação, feito com Nabil Bonduki, foi sobre a formação da periferia de São Paulo. Fizemos um trabalho no município de Osasco procurando entender como eram formados os bairros autoconstruídos. Passei a ter um contato maior com os movimentos populares antes da Constituinte, quando as organizações de entidades populares começavam a se articular, surgiam as primeiras ONGs e o movimento sindical começou a renascer. Dessa relação com os movimentos surgiu a reorganização do Movimento pela Reforma Urbana, cuja finalidade foi apresentar a emenda popular de reforma urbana para a Constituição. Foi aí que teve início, realmente, a minha longa relação com esses movimentos. Passei a participar de centenas de trabalhos de capacitação e formação, que foram extremamente importantes para minha própria formação e capacitação, e fizeram com que eu adquirisse a visão da questão da moradia sob o ponto de vista de quem está lá, lutando e sofrendo para que isso melhore. E desde que comecei a lecionar, sempre trabalhei com a questão urbanística.

aU - Como ocorreu sua indicação para a relatoria da onu?

ROLNIK Logo depois que saí da Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, no início do ano passado, as OGNs internacionais ligadas ao direito à moradia, como a Habitation International e a Coalition, me procuraram para saber se eu gostaria de apresentar minha candidatura, porque o mandato do indiano Miloon Kotari estava terminando. Naquele momento, como o processo seletivo ainda não estava muito claro e nem se sabia quando isso iria acontecer, não levei a coisa adiante. Mas já no final do ano passado, fui novamente procurada pelas mesmas ONGs, que me disseram que o processo seletivo estava aberto e seria público, portanto, tanto os governos quanto as entidades da sociedade civil ou os próprios interessados poderiam fazer indicações.

aU - Então, depois de uma atuação destacada no setor, a escolha do seu nome foi quase natural...

ROLNIK - Acho que há dois fatores nessa história. Claro que tem o fator pessoal, de uma trajetória profissional nacional e internacional, muitos anos de trabalho na área. Mas o Brasil foi outro componente essencial, porque há uma trajetória brasileira importante no que se refere ao direito à moradia. Entre os arquitetos essa luta vem desde os anos 1960, com as primeiras idéias de Reforma Urbana discutidas antes da ditadura, no Congresso dos Arquitetos realizado em 1963, no Rio. O tema foi silenciado durante a ditadura, mas já no final dos anos 1970, junto com os movimentos sociais e populares, os sindicatos de arquitetos e de engenheiros começaram a rediscutir a pauta. Essa trajetória trouxe muitos avanços institucionais no campo dos direitos sociais. Se eu fosse candidata de outro país, mesmo com essa trajetória, acredito que seria mais difícil.

aU - Entre esses avanços, quais a senhora destacaria?

ROLNIK - Em 2000, o direito à moradia foi incluído na nossa Constituição com a lei que cria o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), aprovado pelo Congresso Nacional e que começou a ser implantado no final de 2007. O Sistema foi inspirado no SUS (Sistema Único de Saúde) e é um fundo especial voltado para o auxílio à moradia para pessoas com renda de até três salários mínimos. Envolve as três esferas de governo, e cada instância repassa os recursos à outra, até que a esfera municipal agregue sua porção para intervenções junto à população. O Sistema é fruto de um projeto de lei reivindicado durante 16 anos pelos movimentos sociais e que só agora está virando realidade. Temos também o Estatuto da Cidade, que é um conjunto de instrumentos de natureza urbanística, voltados para induzir — mais que normatizar —, as formas de ocupação do solo urbano. O gargalo fundamental da habitação no Brasil é o acesso ao solo urbano. Os mais pobres não têm esse acesso e, por isso, produzem moradias irregulares e ilegais. E como as políticas públicas sempre foram voltadas para a produção de moradia em lugares distantes do centro, isso terminou aumentando ainda mais a exclusão...

aU - Com as novas leis, a pauta passou a ser institucional?

ROLNIK - É importante assinalar que não é só uma pauta de governo, mas uma pauta da sociedade civil organizada, das entidades profissionais, de engenheiros, arquitetos, advogados, de movimentos sociais e populares. É essa a riqueza do processo brasileiro, e essa foi, possivelmente, uma das principais razões da minha indicação. Além dos avanços da própria Constituição, tem também as práticas dos governos das cidades de todo o País que, desde os anos 1970, vêm trabalhando na organização de favelas, buscando integrar esses espaços nas cidades. Temos muitas experiências no Rio de Janeiro, em Salvador, Belo Horizonte, São Paulo... O Brasil é uma referência internacional nesse campo. O que não quer dizer que tenhamos resolvido o problema — ao contrário, estamos muito longe disso. Mas há mais de 30 anos estamos enfrentando e colocando esse assunto em discussão.

aU - O seu trabalho sempre esteve muito ligado ao pt...

ROLNIK - Eu tenho uma ligação com o PT desde o começo do partido, em 1981, sempre como assessora no que se refere aos temas de moradia, política urbana e do urbanismo. Em 1985, a bancada do PT na Assembléia era formada por Luiza Erundina, Celso Daniel, José Machado — que depois foi prefeito de Piracicaba —, José Dirceu e Clara Ant. Eles montaram uma assessoria coletiva e fui trabalhar com a líder da bancada, que era a Luiza Erundina. Eleita prefeita, ela me convidou para assumir a Diretoria de Planejamento Urbano da Secretaria do Planejamento, cujo secretário era o Paul Singer. Na Secretaria, começamos a discutir o Plano Diretor e os novos instrumentos de política urbana que, na época, eram necessários para a cidade. Quando terminou a gestão da Erundina passei a trabalhar na Câmara, também assessorando vereadores da bancada do PT. Logo em seguida fui trabalhar no Instituto Pólis, uma ONG que fundamos em 1988, só que, como fui para a Prefeitura, não tinha chegado a trabalhar lá.

aU - Até o lula ganhar as eleições para a presidência e formar o ministério das cidades...

ROLNIK Até o Lula ganhar a eleição e convidar o Olívio Dutra para o Ministério das Cidades. O Dutra, por sua vez, me convidou para assumir a Secretaria Nacional de Programas Urbanos, num movimento que era muito a idéia de uma secretaria para implementar o Estatuto da Cidade, votado em 2000.

aU - Do qual a senhora tinha participado ativamente....

ROLNIK - Sim, participei intensamente do Estatuto da Cidade. Desde a primeira versão, da emenda popular na Constituição, acompanhei as discussões no Congresso, e depois a tramitação...

aU - Mas o Olívio caiu e o Márcio Fortes assumiu ...

ROLNIK - Exato. Era 2005 e estávamos em plena campanha pela implantação dos planos diretores participativos, que era o elemento fundamental para implementação do Estatuto. Então, naquele momento, achei que era importante e necessário terminar todo o trabalho e ficar até o prazo marcado para a apresentação dos planos pelas cidades, que era outubro de 2006. Fiquei até o final do ano, e só então pedi para sair.

aU - Não dava mais para continuar?

ROLNIK - Saí por duas razões. Desde que o Odílio Dutra e a Ermínia Maricato saíram com suas equipes, já não era a mesma coisa, claro. A nova equipe que assumiu estava ligada ao PP (Partido Popular)... Enfim, são as contingências de um governo de coalizão, de uma base governista... Mas, evidentemente, as prioridades e a linha fundamental do Ministério deixaram de ser a agenda da reforma urbana e da construção de uma nova forma de fazer política urbana no País. A agenda passou a ser a da distribuição de recursos para moradia e saneamento, que também é importante. Mas não era o meu perfil. O meu é mais de despertar uma política, de inovar na política, de discutir política fundiária, de trabalhar a reforma urbana. Assim, me pareceu que as condições políticas para que isso pudesse ser feito estavam limitadas naquele momento e achei que era melhor voltar para a Universidade, para a reflexão. Acho importante que o intelectual ligado à política habitacional, à política urbana, tenha uma prática de pensar, pesquisar, formular, experimentar, trabalhando junto ao governo, assessorando o governo, mas também ter a oportunidade de avaliar criticamente, para poder repensar. Durante 20 anos trabalhamos numa certa direção, implantamos muita coisa, tivemos grandes avanços, mas também muitos problemas, e acho que é hora de fazer um balanço disso tudo.

aU - Mas no final, como avalia sua experiência no ministério?

ROLNIK - Apesar do pouco tempo e dos poucos recursos de que dispúnhamos, conseguimos caminhar. Claro que tem muita coisa ainda para caminhar, mas avançamos. Começamos a formular uma política para o País, conseguimos avançar muito na área do planejamento urbano. Tiramos o planejamento urbano do limbo, o assunto voltou a ser debatido no País, agora comprometido com uma gestão democrática e não com um governo tecnocrático. Acho que se conseguiu colocar as políticas novamente de pé, de saneamento básico, de habitação de interesse social. Foi eleito um Conselho Nacional das Cidades que, junto com o Ministério, tem suas políticas. Enfim, se estabeleceu um endereço de referência para a política urbana em Brasília. Acho que tivemos enormes avanços com o Ministério das Cidades e, para mim, particularmente, embora a experiência tenha sido duríssima, foi extremamente gratificante. Saí satisfeita com o que foi feito, com o que deu para aprender, com tudo o que deu para conhecer do Brasil, para entender o que não entendíamos...

aU - Foi um desafio lidar com as nossas diversidades?

ROLNIK - Veja, apesar de muita experiência paulistana, eu já tinha trabalhado como consultora em vários pontos do País, como Belo Horizonte, Salvador, Recife, Natal, Campo Grande, e achava que conhecia outras realidades. Na verdade conhecia muito pouco, mas dava para ter uma idéia da diversidade do Brasil. Mas a política urbana tradicional ignora a diversidade e as diferenças, e trabalha com uma matriz única. Acho que a experiência foi muito importante para aprender a entender as diversidades... E agora vou ter que trabalhar com diversidades bem maiores...

aU - Então, em certo sentido, a experiência no ministério das cidades foi um aquecimento para o trabalho nas nações unidas...

ROLNIK - Eu tenho trabalhado em outros países como em El Salvador, Costa Rica, Equador. Dei cursos e palestras para profissionais da área na Argentina, no Uruguai, no Chile. Nesse campo específico, eu conheço razoavelmente a América Latina. Também acompanhei os Fóruns Urbanos Mundiais junto ao UN-Habitat, desde Istambul. Então já estou exposta a uma visão mais internacional da questão, mas o mundo asiático e o mundo árabe ainda são inteiramente desconhecidos para mim...

aU - E no momento, muitos países em vias de desenvolvimento estão passando por uma forte urbanização...

ROLNIK - Acho que as minhas prioridades serão África e Ásia, que passam por um processo muito rápido e violento de urbanização. O que nós vivemos na América Latina nos anos 1950, com a migração dos campos para as cidades, os países africanos e asiáticos estão passando agora. Os países daqueles continentes serão a prioridade da relatoria, pois a idéia é tentar evitar que eles cometam os mesmos erros ocorridos na América Latina. Mostraremos a nossa realidade, os resultados da falta de uma política preventiva, para que eles evitem seguir pelo mesmo caminho. Porque no Brasil, só hoje se pensa em política preventiva, nunca se imaginou que nossas cidades se transformariam nessa loucura toda. Minha prioridade será discutir quais as políticas urbanísticas e de acesso ao solo urbano serão possíveis na Ásia e na África para que se evite o caos nas grandes cidades.

aU - Em entrevista para a grande imprensa paulista, a senhora criticou a proliferação de condomínios nas cidades brasileiras. Infelizmente, o problema não é só brasileiro. com o crescimento da violência, esse tipo de moradia é adotado hoje em vários países, tanto da áfrica quanto do oriente médio. isso também será tema de suas preocupações?

ROLNIK - É uma epidemia! Vou entrar com a minha militância anticondomínios! Acho que não poderemos ter direito à moradia se não se fizer cidades mais includentes e coesas. Esse modelo de apartação social, de segregação, todo em gueto, com os ricos fechados em fortaleza fortificada, só tem exacerbado a violência, o mal-estar, o desequilíbrio econômico-social e ambiental de nossa sociedade. Nós vamos ter de aprender a conviver e compartilhar os espaços da cidade. Eu não vejo uma solução que não passe por isso. E acredito que essa é uma utopia possível, a humanidade tem que colocar isso como utopia. Da mesma maneira que se quer colocar como utopia a salvação do planeta de uma ruína ambiental, acho que deveríamos também colocar a utopia de salvar o planeta da ruína sócio-político-territorial para a qual estamos caminhando. Vivemos um momento de crise, e a crise é sempre um excelente momento para se repensar o modelo de civilização.