Um adolescente de 14 anos, morador de Campo Grande (MS), foi identificado pela Polícia Civil como um dos líderes de uma rede de crimes de ódio que operava virtualmente, alvejando crianças e adolescentes em todo o país. A revelação, feita durante a Operação Adolescência Segura, reacende um alerta sombrio: a infância e a adolescência brasileiras estão sendo capturadas por redes digitais que propagam violência extrema, em um cenário onde a escola, a família e o Estado parecem ter perdido a capacidade de resposta.
A operação, deflagrada em sete estados e coordenada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, expôs um submundo que combina tecnologia criptografada, ideologias extremistas e práticas criminosas de altíssimo potencial destrutivo: tentativa de homicídio, incitação ao suicídio, automutilação, apologia ao nazismo e pornografia infantil. O grupo se organizava por meio de plataformas como Discord e Telegram, promovendo desafios e “competições” com atos de ódio como critério de prestígio.
A ponta mais visível do iceberg surgiu em fevereiro de 2025, quando um adolescente lançou dois coquetéis molotov contra um morador em situação de rua, que teve 70% do corpo queimado. A cena foi transmitida ao vivo para mais de 200 membros do grupo. Segundo a delegada Ana Cláudia Medina, do Departamento de Repressão à Corrupção e ao Crime Organizado (Dracco), o jovem de 14 anos exercia uma espécie de comando hierárquico sobre os demais membros. Ainda que não tenha sido apreendido, por ausência de flagrante, sua liderança foi confirmada pelas investigações.
Essa não é uma aberração isolada. É um sintoma.
O espelho quebrado da escola brasileira
Paralelamente, uma análise da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) publicada nesta semana mostra que os casos de violência no ambiente escolar mais que triplicaram nos últimos dez anos, atingindo o pico em 2023, com 13.117 registros de automutilação, tentativas de suicídio, agressões físicas e ataques psicológicos. A escalada, que retoma força após a pandemia, traça uma curva preocupante de deterioração da convivência escolar — especialmente entre jovens.
Os dados revelam que metade das ocorrências envolve agressão física; violência psicológica e sexual também têm índices alarmantes, próximas dos 24%. A maior parte dos agressores são colegas de sala, ou seja, a violência parte de dentro — e não de fora — da comunidade escolar.
Segundo o relatório da FAPESP, há uma conjunção de fatores: precarização da infraestrutura escolar, falhas na mediação de conflitos, desvalorização dos professores, disseminação de discursos de ódio e o crescimento das chamadas “comunidades mórbidas virtuais” — agrupamentos digitais que promovem ideias destrutivas, como a apologia à automutilação, ao suicídio e ao extermínio de minorias.
A cientista social e professora da USP, Vera Paiva, lembra que “o enfraquecimento da autoridade simbólica da escola é reflexo de uma sociedade que perdeu o pacto coletivo sobre o que é educar”. Para ela, “não é possível conter a violência escolar com policiamento: é preciso reconstruir os vínculos de solidariedade e pertencimento”.
A erosão do espaço público e da infância
A radicalização juvenil, amplificada pelas redes sociais e pelas lacunas do sistema educacional, reflete uma crise mais ampla: a erosão do espaço público como lugar de convivência democrática. A filósofa Hannah Arendt advertia que “o totalitarismo começa onde termina a política” — isto é, quando a pluralidade é suprimida pela lógica da guerra cultural, e o outro vira inimigo a ser eliminado.
O ambiente digital, nesse contexto, se tornou um território fértil para a semeadura do ódio. Grupos como os desarticulados pela operação Adolescência Segura funcionam como pequenas células ideológicas, onde jovens em busca de pertencimento encontram reconhecimento não pelo afeto ou pela criatividade, mas pelo grau de crueldade.
O filósofo Byung-Chul Han aponta que vivemos numa “sociedade do cansaço”, marcada pela autoexploração e pelo colapso das relações empáticas. Quando a juventude não encontra canais de expressão construtiva, a violência passa a operar como linguagem de identidade e resistência — ainda que destrutiva.
O fracasso das políticas públicas
O Ministério da Educação (MEC) classifica a violência escolar em quatro grandes categorias: ataques letais premeditados, violência interpessoal, bullying e violência no entorno da escola (como tráfico ou assaltos). Mas esse diagnóstico técnico não tem sido acompanhado de políticas públicas robustas. Em muitos estados, as secretarias de educação ainda carecem de protocolos para lidar com casos de racismo, misoginia e LGBTQIA+fobia. A presença de gestões escolares racial e gender-representativas — apontada como essencial — é rara, especialmente na rede privada.
A FAPESP recomenda ações intersetoriais, envolvendo saúde, justiça e assistência social, e defende a transformação da cultura escolar. Não se trata de criar programas pontuais, mas de refundar o pacto educacional com base em valores democráticos, escuta ativa e participação comunitária.
Um futuro em disputa
A escalada de violência nas escolas e nas redes não é apenas um problema juvenil — é um retrato da sociedade que os adultos estão construindo (ou permitindo ruir). O caso do adolescente de Campo Grande não é o início de uma narrativa trágica: é o desfecho de várias negligências acumuladas.
Diante disso, não basta investigar, punir e apreender. É preciso entender por que um menino de 14 anos se tornou líder de um grupo que celebra a dor e promove o ódio. É preciso perguntar o que levou mais de 200 jovens a assistir, em tempo real, um atentado a um morador de rua. É preciso olhar para as salas de aula, hoje cenário de guerra simbólica e física, e reconhecer ali o esfacelamento do que Paulo Freire chamava de “esperança como ato político”.
Em tempos de algoritmos, bolhas e desinformação, preservar a infância e a adolescência é um desafio civilizacional. E é também o teste definitivo de nossa democracia.