A descoberta de pontas de lança de pedra, pigmentos e restos de comida carbonizados de 11 mil anos, na Caverna da Pedra Pintada, na Amazônia, pode mudar as teorias sobre a ocupação do homem na América e a migração dos povos pelo mundo. Os autores da descoberta - arqueólogos e espeleólogos (especialistas em cavernas) brasileiros, chefiados pela pesquisadora americana Anna Roosevelt, do Museu Field, de Chicago - descrevem seus achados no artigo de capa de hoje da revista Science, da Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS).
"Há três pontos importantes a serem destacados", revelou Anna Roosevelt pelo telefone ao JORNAL DO BRASIL. "Primeiro, a imagem da colonização das Américas é mais complexa do que se pensava. Segundo, as culturas que se desenvolveram na América do Sul não descendem da tradição Clóvis dos índios norte-americanos: várias culturas teriam se desenvolvido na mesma época em diferentes regiões de forma independente. Terceiro, ao contrário do que pensavam muitos antropólogos, grupos de caçadores e coletores entraram na floresta tropical úmida e viveram na Amazônia sem adotar uma prática agrícola", resume Roosevelt.
Provas - Conhecida dos arqueólogos e espeleólogos brasileiros por suas pinturas, a Caverna da Pedra Pintada, da Era Paleozóica, nunca fora explorada a fundo. A equipe de Anna Roosevelt foi a primeira a fazer escavações no local. O objetivo era buscar provas da existência de índios pré-históricos. E encontrou. Pontas de lança, instrumentos de pedra, imagens em cores vermelha e amarela, impressões de mãos de adultos e crianças e restos de comida carbonizados são evidências de que uma sociedade próspera viveu na floresta tropical úmida.
Durante décadas, o consenso entre os pesquisadores era de que os primeiros americanos, ou paleoíndios, teriam vindo da Ásia, através do Estreito de Bering, na Idade do Gelo, e migrado pela Cordilheira dos Andes até a América do Sul, sobrevivendo como caçadores de grandes animais e adaptando-se às regiões abertas e temperadas.
"Mas as novas evidências revelam que grupos paleoíndios viveram, há pouco mais de 11 mil anos, na Caverna da Pedra Pintada por 12 séculos", contou Anna. "Essa cultura pode ter sido muito diferente da de seus contemporâneos do Norte, desafiando ainda mais a teoria até agora mais aceita de que a tradição Clovis teria influenciado culturalmente as primeiras sociedades sul-americanas", contrapõe.
Subsistência - Segundo Anna, as evidências também permitem afirmar que a floresta tropical úmida não foi, como se pensava, um ambiente hostil para esses povos pré-históricos. "Ao contrário, o homem primitivo teria usado a floresta para sua subsistência, o que desmistifica a visão utópica de que a Amazônia permaneceu intacta até a chegada dos colonizadores europeus", comenta o geólogo Marcondes Lima da Costa, do Departamento de Geociências da Universidade Federal do Pará.
Responsável pela caracterização geológica de todo o material lítico (originário de pedras), Marcondes destaca que o homem do Pleistoceno, que viveu há 11 mil anos, se alimentou de espécies animais e vegetais - como as castanhas-do-pará -, muitas das quais existem até hoje.
Além de Marcondes, a equipe de Roosevelt inclui os brasileiros Cristiane Lopes Machado, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Maura Imázio da Silveira, do Museu Emílio Goeldi e da Universidade de São Paulo.
"Tese não é novidade"
"Os pontos que a Anna Roosevelt levanta com sua nova descoberta são corriqueiros para os arqueólogos da América do Sul", aponta o bioantropólogo e arqueólogo Walter Neves, do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos, da Universidade de São Paulo. "Os pesquisadores da América do Norte nem aceitam que existam sítios arqueológicos de 11 mil anos. O artigo vai apresentar para a comunidade científica internacional, através de uma das revistas mais respeitadas da área, o que já sabíamos há tempos no Brasil", diz.
Segundo o arqueólogo da USP, a grande questão é se haveria ocupações humanas mais antigas do que 11 mil anos. "A descoberta de Anna não traz novidades nesse sentido", destaca Neves. "Mas o que pode ser deduzido é que, na medida em que existiram populações humanas na América do Sul há 11 mil anos, outras sociedades devem ter ocupado o Norte da América antes dessa data, já que a ocupação se deu no sentido do Alasca para os Estados Unidos, a América Central e a América do Sul."
Neves diz que também não há novidades em relação aos hábitos alimentares descritos por Roosevelt. Ele lembra que os paleoíndios dos Estados Unidos se especializaram na caça. "Mas, na América do Sul, o Padre Smith e o arqueólogo francês André Prous já haviam mostrado que, no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais respectivamente, não existem evidências de que os grupos humanos explorassem a megafauna (caça de grandes animais)". (A.I.)
Notícia
Jornal do Brasil