Electronic: samba a música brasileira no contexto das tendências internacionais, de Adonay Ariza (Fapesp/Editora Annablume, 364 páginas, R$ 48) tinha tudo para se tornar uma obra essencial na ainda pobre bibliografia musical brasileira. O livro aborda as mudanças sofridas pela MPB nos últimos dez anos, embora populares, foram tão importantes quanto as que a atingiram no final da década de 50, com a bossa nova, e nos anos 60, com o tropicalismo, o manguebeat, o uso de programações e eletrônica com bossa nova, principalmente estes dois, a aceitação pelos europeus de uma outra música brasileira até então ignorada até mesmo pela maioria dos brasileiros, caso do forró e coco nordestinos.
Este livro, que se propõe a explicar e historiar esta nova música, originou-se da dissertação de mestrado de Ariza na Escola de Artes e Comunicação da USP. Como todo trabalho do gênero, Electronic: samba está repleto de citações, análises, percentuais, números, necessários a trabalhos acadêmicos, que devem ser interessar a bancas examinadoras. Para o leitor comum é chato.
Não apenas chato, mas coalhado de informações erradas, confusas, ou meros "enchimento de lingüiça". Exemplo: "Desde criança Hermeto esteve em contato com a música do Nordeste brasileiro". A frase abre o, vamos dizer, verbete, sobre Hermeto Pascoal. Ora, Hermeto é de Lagoa da Canoa, interior de Alagoas, onde viveu até os 14 anos, como não poderia ter contato com a música nordestina? Antes, Ariza, escrevendo sobre músicos brasileiros com destaque no exterior diz: Chic (sic) Corea gravou junto com Flora Purim a produção Light as a feather". Chick Corea não apenas gravou com Flora Purim. Flora fazia parte do grupo Return to Forever, com Chick Corea. Mais à frente, numa biografia resumida de Naná Vasconcelos, lê-se: "...Seu sonho era ser músico, mas felizmente a realidade o converteu em um talentoso artista que domina os segredos de diversos instrumentos de percussão", como se percussionista não fosse músico.
Adonay Ariza tem 32 anos e os vícios da geração Internet. Pelo menos é o que dá a entender, pelo pouco que informa de músicos como Eumir Deodato que só consegue rastrear a partir de 1968 (Deodato foi um dos músicos mais atuantes da era do bossa jazz, com um grupo antológico, Os Gatos). Pior, atribui a Eumir Deodato a versão de Also sprach Zarathustra usada no clásico 2001: uma odisséia no espaço (1968), de Stanley Kubrick. Deodato emplacou um sucesso mundial com esta peça erudita com arranjo funkeado, mas lançada em 1972, no álbum Prelude (a versão de Deodato foi utilizada no filme Muito além do jardim, com Peter Sellers, em 1979).
Em compensação, sabe tudo sobre Bebel Gilberto e obscuros cantores e cantoras que fazem carreira no circuito clubber europeu. De Bebel, afirma ser a cantora brasileira de maior sucesso no exterior desde Carmen Miranda. A filha de João Gilberto é conhecida basicamente em círculos restritos da Europa e EUA (da mesma forma que Seu Jorge, Nação Zumbi ou Céu). Mais sucesso que ela nos últimos anos têm feito Daniela Mercury ou Marisa Monte. Nenhuma das duas, porém, nem mesmo Carmen Miranda, em disco, foi mais bem-sucedida no exterior do que a baiana Astrud Gilberto (ex-mulher de João Gilberto), que em 1964 rompeu a barreira do milhão de cópias vendidas, só nos EUA, de The girl from Ipanema.
Os "errinhos" se repetem ao longo do livro, reafirmando uma negligência irritante do autor (Balança pemba, de Jorge Ben Jor está como Balança pena e Black Sabat em lugar de Black Sabbath). O livro também peca pela falta de coerência estilística. É em parte ensaio, em parte dicionário de músicos. Se em nomes recentes, Adonay Ariza é mais preciso, descrevendo em mínimos detalhes a trajetória do grupo Zuco 103 e da citadíssima Bebel Gilberto na Europa, quando envereda pelo trabalho de artistas mais antigos, perde-se em análises mal-engendradas feito esta, sobre o maestro Moacir Santos: "Os dois discos (refere-se a Ouro negro, de 2001) mostram as influências do jazz, referências africanas, conceitos de trilhas sonoras ao estilo hollywoodiano e diversos aspectos que poderiam talvez ter dado origem a manifestações musicais insuspeitas se tivessem sido difundidas no Brasil". Seja lá o que Azira quis dizer com isso, a música de Moacir Santos deste disco é produto de quase meio século de sua experiências nos EUA, não poderiam ter influenciado ninguém nos anos 60. Naquela década, Moacir Santos, isto sim, fez amigos e influenciou pessoas com seu trabalho para o cinema, arranjos para dezenas de LPs e, sobretudo, com o álbum Coisas, de longe o mais influente disco instrumental já feito no Brasil.
Electronic: samba, por mais louvável que tenha sido a intenção do autor, finda sendo, tão e somente, um porto mal-estruturado, de onde outras pessoas podem se aventurar por estes mares mal-navegados.
Notícia
Jornal do Commercio (PE)