O Brasil corre o risco de ser apenas um usuário de sistemas de inteligência artificial (IA) desenvolvidos no exterior. A dependência de outros países e de grandes empresas nessa área pode comprometer a segurança e a soberania nacional, além de diminuir a competitividade das empresas brasileiras. Para reverter esse cenário, é preciso investir em infraestrutura e na formação de profissionais altamente qualificados e em um corpo de pesquisadores capaz de promover avanços tecnológicos e propor soluções inovadoras.
Essas e outras orientações constam do relatório “Recomendações para o avanço da inteligência artificial no Brasil”, lançado na última quinta-feira, 9, pela Academia Brasileira de Ciências (ABC), no Rio de Janeiro. Fruto do esforço de um grupo de trabalho formado por 16 pesquisadores de diferentes áreas do saber e instituições de ensino e pesquisa do país, o documento apresenta análises sobre diferentes aspectos da IA em nível global e tece recomendações para o avanço da área no Brasil, indicando estratégias para seu crescimento.
O mundo atualmente vive uma corrida pela liderança tecnológica nessa área, com destaque para China e Estados Unidos, que enxergam na IA uma oportunidade para aumentar a produtividade de suas empresas e alcançar a superioridade geopolítica e militar.
Na avaliação da ABC, o Brasil não pode ficar de fora desse movimento. “Os países que pretendem construir novas tecnologias com base em IA devem ter capacidade de entender os princípios do desenvolvimento dessas soluções”, escreveram os pesquisadores. “De outra forma, a falta de conhecimento perpetuará uma dependência cada vez maior das grandes corporações e dos países dominantes dessa tecnologia.”
O relatório lançado pela ABC contextualiza o desenvolvimento da IA no país à luz de três pré-requisitos: dados, mão de obra qualificada e infraestrutura. Sabe-se que o Brasil produz muitos dados e que sua população, historicamente, faz uso de muitas tecnologias digitais, de modo que o país dispõe de uma grande diversidade de bases de dados e registros administrativos do governo que podem ser utilizadas para alimentar sistemas de IA. Na avaliação dos autores do documento, o que falta é pessoal qualificado e infraestrutura.
Segundo o relatório, embora o Brasil possua cientistas capacitados e internacionalmente reconhecidos por pesquisas em diversas áreas — inclusive em IA —, ainda falta massa crítica necessária para impulsionar avanços tecnológicos significativos ou mesmo fazer uso adequado dessa tecnologia, que está em rápida e constante mudança.
A situação se torna ainda mais preocupante com os avanços e a proliferação dos grandes modelos de linguagem (large language model, LLM), os quais conseguem analisar enormes quantidades de dados de texto, identificar bilhões de padrões sobre como as pessoas conectam palavras, números e símbolos, e, a partir disso, aprender a gerar textos novos. “O Brasil não tem domínio amplo dessa tecnologia, e a lacuna em relação aos países que estão na vanguarda de pesquisa, desenvolvimento e inovação [PD&I] nessa área cresce a taxas exponenciais”, destacaram os autores.
Estudantes das principais universidades brasileiras têm se interessado pelas áreas de IA, mas o número de profissionais qualificados em relação à população nacional permanece baixo. Soma-se a isso o apelo de mercados de trabalho com cargos e remunerações mais atraentes em outros países, o que tem feito com que cada vez mais profissionais brasileiros optem por trabalhar no exterior, comprometendo a capacidade do país de criar um ambiente propício à inovação e ao desenvolvimento de startups em IA e áreas relacionadas.
“Os profissionais contratados por grandes empresas estrangeiras e multinacionais de alta tecnologia recebem salários muito superiores às quantias pagas pelas bolsas de pesquisa nacionais”, afirmam os autores. “Isso evidencia o desafio que startups e empresas nacionais de pequeno e médio porte enfrentarão para competir por talentos”, completam. E eles acrescentam: "A combinação de bolsas e salários baixos com condições insatisfatórias de trabalho tem desencorajado estudantes a seguir a carreira acadêmica, criando um ciclo vicioso de declínio na educação das futuras gerações de cientistas".
É importante que o Brasil disponha de massa crítica qualificada que domine áreas e subáreas relacionadas à IA. Formar esse corpo de profissionais, no entanto, requer tempo. Países e empresas na vanguarda do desenvolvimento dessa tecnologia iniciaram esse processo há mais de dez anos. “O Brasil precisa enfrentar esse desafio com agilidade e em grande escala”, afirmam. Algumas estratégias podem ajudar nesse sentido. A formação de recursos humanos qualificados, segundo os autores do documento, passa pela promoção da P&D, com investimento público e privado, e pela colaboração entre pesquisadores em universidades e empresas.
Atrair especialistas em IA também poderia acelerar a evolução do país e torná-lo um ator significativo nessa área. A captação de especialistas, no entanto, exige o estabelecimento de centros internacionais de pesquisa no país, similares aos existentes na Europa e nos Estados Unidos. A cooperação entre universidades e instituições de pesquisa poderia gerar oportunidades de projetos atraentes, facilitando a vinda desses especialistas.
Os autores recomendam ainda a implementação de um programa de bolsas para estudantes em IA e áreas correlatas, incentivando-os a atuar como tutores e impulsionadores do conhecimento e de inovações em IA em cursos de graduação e pós-graduação. Em outra frente, destacam que seria igualmente estratégico estabelecer centros de excelência multidisciplinares, particularmente em universidades que já possuem grupos robustos de IA, assim como buscar colaborações e parcerias entre universidades, empresas e o governo no contexto de formação de pessoal e desenvolvimento de tecnologias para gerar produtos inovadores em diversos setores da economia.
No entanto, apesar dos potenciais benefícios e oportunidades, há evidências de que os sistemas de IA podem trazer danos a indivíduos, grupos, sociedades e ao planeta. Entre as preocupações estão violações de privacidade, criação de ambientes anticompetitivos e manipulação de comportamentos. Nesse sentido, é crucial que o Brasil discuta os riscos éticos e sociais associados à essa tecnologia e que esse debate oriente o estabelecimento de princípios, regras e legislações para minimizar os riscos associados à tecnologia.
Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden assinou recentemente uma ordem executiva exigindo que as empresas reportem ao governo federal se e como seus sistemas podem ajudar países ou terroristas a fabricar armas de destruição em massa. A ordem também procura diminuir os perigos de práticas como deepfake — técnica que usa inteligência artificial para fazer edições profundas no conteúdo, sendo possível trocar digitalmente o rosto de uma pessoa ou simular sua voz, fazendo com que ela faça o que não fez ou diga o que não disse —, as quais que podem influenciar as eleições ou enganar os consumidores.
O principal desafio — não apenas no Brasil, mas em outros países — envolvendo a construção de uma regulação para a IA é que as regras e leis sejam justas, inclusivas e que protejam a sociedade. Ao mesmo tempo, não devem atrasar ou paralisar o desenvolvimento da tecnologia — no Brasil, já existem exemplos de pesquisas em IA limitadas ou inviabilizadas por conta da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), sancionada em setembro de 2020.
“Sem investimentos adequados e políticas públicas duradouras e apropriadas, o quadro global de IA pode empurrar o Brasil para um declínio tecnológico sem precedentes”, afirmam os autores. “É imperativo que o Brasil estabeleça políticas públicas e investimentos para reverter essa tendência sem demora. Se persistir a inércia, o impacto negativo será sentido a curto prazo na educação, nos demais índices sociais e na economia, com a consequente falta de competitividade empresarial em todas as áreas.”
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Rodrigo Andrade