A primeira impressão da morte marcou para sempre o garoto Antonio Drauzio Varella, de 4 anos, o corpo franzino esgueirando-se pela porta do quarto dos pais. A vida de Lydia, mãe do futuro médico mais popular do Brasil, chegava ao fim aos 32 anos, vencida por uma doença muscular degenerativa. Debruçada sobre uma pilha de travesseiros, respirava a longos intervalos depois de meses de agonia. "No final, o braço dela despencou, a aliança de casamento caiu, correu pelo assoalho e fez três voltas antes de parar." Na vida familiar e na carreira, o oncologista paulistaníssimo do Brás sempre esteve às voltas com o universo dos doentes terminais, tema do aguardado Por um Fio, que chega às livrarias nesta semana.
O livro é o oposto de Estação Carandiru, que já vendeu 450 mil exemplares e transportou os brasileiros ao cotidiano do maior presídio do país. Em Por um Fio, Drauzio abandona o distanciamento cauteloso da obra de estréia. Não se limita a narrar episódios como um observador sem sangue nas veias. Cai de cabeça, expõe-se e percorre com habilidade a fina linha que separa emoção e pieguice.
"Achei que esse livro só teria sentido se eu me colocasse inteiro dentro dele. Procurei relembrar os sentimentos de cada momento", conta. Nem por isso o autor abusa de adjetivos. O hábil narrador que, em Estação Carandiru, faz o leitor captar o êxtase da malandragem diante do rebolado de Rita Cadillac ou enxergar as ranhuras banais de um copo americano reaparece em Por um Fio.
As histórias dos doentes e de seus conflitos familiares são relatadas com detalhes tão surpreendentes que parecem ficção. Aos 61 anos, Drauzio assegura que foi fiel aos relatos, preservando apenas a identidade dos pacientes. Sua tese central é a de que a notícia da morte iminente opera transformações inesperadas a ponto de tornar alguns pacientes mais felizes do que nunca (leia a entrevista à pág. 82).
Testemunha das mais desencontradas reações diante do fim anunciado (revolta, surpresa, aceitação passiva, choro convulsivo, riso), em três décadas de atendimento a doentes sem chance de cura, ele confessa que por muitos anos se deixou contaminar pelos sentimentos deles e dos familiares a ponto de ficar emocionalmente imobilizado. Precisava lutar consigo mesmo para não abreviar a conversa e sair de perto.
Suicídio
Desde os anos 70, Drauzio acompanhou milhares de pacientes terminais com câncer e Aids - na era pré-coquetel, perdia cinco deles por semana. Por mais sofrida que fosse a existência dos doentes, apenas dois se suicidaram. Número inferior ao de amigos aparentemente sadios do médico que, nesse mesmo período, desistiram de viver. A explicação, segundo ele, está no apego incondicional à vida, uma força selecionada pela natureza nas gerações que nos precederam. Várias vezes, esse mecanismo de proteção só se revela quando a pessoa toma consciência da proximidade da morte. É o que a encoraja a aceitar a mutilação e as limitações de toda ordem só para se manter viva. Mesmo quando não existe possibilidade de cura, há muito a ser feito pelos pacientes (leia a reportagem à pág. 86). Ao contrário do que ocorria há 30 anos, quando os médicos fugiam dos doentes de câncer como o diabo da cruz, a intenção de curar está deixando de ser a função central da Medicina. Drauzio ressalta que, mais do que curar, a missão primordial de seu ofício é aliviar o sofrimento.
"O mais difícil nessa profissão é reconhecer o momento em que a morte é iminente e conduzir o paciente com arte até que a vida se apague", diz.
Celebridade
Não importa onde Drauzio esteja: na classe executiva da melhor companhia aérea ou no banheiro público menos confiável, é sempre solicitado a dar consultas relâmpagos. O médico que virou referência nacional de educação sobre saúde não se abala com as intromissões. Procura oferecer o melhor conselho possível em conversas de um minuto e meio. O que o incomoda são os convites para eventos sociais, aos quais raramente comparece.
O assédio aumentou desde que passou a apresentar no Fantástico, da Globo, séries educativas sobre o corpo humano, primeiros socorros e obesidade e liderou uma cruzada contra o cigano. O quadro é um dos recordistas de cartas ao programa porque democratizou o acesso à informação médica de qualidade. Muitos dos telespectadores contam que conseguiram parar de fumar ou foram salvos de acidentes graças a seus comentários.
A paixão nacional pelo médico que fala a língua do povo não impede que ele seja alvo de críticas. A série Grávidas, apresentada nas noites de domingo, motivou mensagens nada amistosas em um blog criado na internet. Drauzio foi acusado de conluio com os hospitais para promover cesarianas desnecessárias. "Não levo esses comentários a sério. Nos dois casos havia total indicação de parto cirúrgico: uma das mulheres era hipertensa grave e a outra dava à luz pela primeira vez aos 42 anos", argumenta.
Divulgador
Falando a milhões de brasileiros pela TV, Drauzio retoma o incansável papel de divulgador que o tomou conhecido nos anos 80. Ao testemunhar em Nova York a devastação imposta pela Aids em 1983, foi o primeiro a alertar o governo Figueiredo sobre o risco de a epidemia chegar rapidamente ao Brasil. A resposta da burocracia: "Nossas urgências são a esquistossomose e a malária, e não uma doença de homossexuais nova-iorquinos". Em pouco tempo sua previsão se confirmou. Convidado por duas rádios paulistanas (a Jovem Pan AM e depois a 89 FM), colocou no ar mensagens sobre a importância da camisinha e o risco das seringas compartilhadas. De tão diretas, as mensagens beiravam a grosseria. Quem ouviu não se esquece: "Aqui é o doutor Drauzio Varella falando com você, que pega pesado. Todos os que continuarem tomando baque na veia vão pegar o vírus da Aids. Não vai escapar um. Cai fora da seringa, cara, enquanto é tempo. Se você não consegue encarar a vida de cara limpa, fuma, cheira, faz supositório. Mas não injeta na veia, pelo amor de Deus".
Múltiplos Interesses
Drauzio Varella não pára. Onde quer que esteja, começa o dia praticando corrida, sua atividade física favorita. Várias vezes encarou os 42 quilômetros da Maratona de Nova York (em 1994, atingiu sua melhor marca: três horas e 38 minutos), mas neste ano não estará entre os corredores. Falta-lhe tempo para treinar como gostaria.
Apesar da dedicação aos programas de TV, às colunas nos jornais, à literatura, ao site de saúde www.drauziovarella.com.br, o médico passa a maior parte da semana no consultório que mantém em sociedade com o oncologista Narciso Escaleira, seu companheiro desde os tempos em que eram jovens e lecionavam no cursinho pré-vestibular. O nome Objetivo, que daria origem ao maior império de educação privada no Brasil, foi sugerido por Drauzio ao fundador, João Carlos Di Génio. O vínculo com o empresário permanece vivo. A Universidade Paulista (Unip), do mesmo grupo, patrocina seu projeto de pesquisa na Amazônia, que também conta com o apoio da Fundação de Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Nos raros intervalos, o médico coordena uma equipe de pesquisadores que coleta plantas brasileiras às margens do Rio Negro. O objetivo é obter extratos para testá-los contra células tumorais e bactérias resistentes a antibióticos.
Família
Marido da atriz Regina Braga há 23 anos e pai de Mariana e Letícia, filhas de seu primeiro casamento, Drauzio experimenta a desconcertante experiência de ser avô. Manuela (filha de Mariana) nasceu há um mês. "Pela primeira vez a vida deu uma volta totalmente independente de mim. Estou começando a ficar desnecessário", interpreta.
O senso de responsabilidade pela família e pelos irmãos o acompanha desde sempre. Com a morte precoce da mãe e da "segunda mãe" (a avó materna, quando ele tinha 8 anos), Drauzio passou a zelar pela irmã, Maria Helena, e pelo caçula, António Fernando. O irmão mais novo, também médico, foi seu braço direito no consultório até 1991, quando morreu de câncer de pulmão. Fumante desde a adolescência, Fernando diagnosticou a própria doença e entregou-se aos cuidados de Drauzio. Os irmãos sentiram na pele os limites da técnica diante da morte anunciada. E foi Fernando quem disse: "Todo médico deveria passar por isso".
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