Coerência discursiva e harmonização legislativo-regulatória em prol da qualidade da lei
Apesar de ter apresentado um discurso mais sóbrio e engajado na recente Cúpula de Líderes pelo Clima, o Brasil ficou, na mesma semana, fora de um dos principais acontecimentos da pauta socioambiental da atualidade: a entrada em vigor do Acordo de Escazú.
Marco na promoção dos direitos à transparência, participação social e acesso à justiça em matéria ambiental, o instrumento foi concluído e aberto para assinaturas em 2018. Em contraposição ao protagonismo brasileiro nas negociações do acordo e ao fato de ter sido um dos primeiros países a assiná-lo, ele nunca foi encaminhado pelo Poder Executivo para aprovação no Congresso Nacional, passo indispensável para o processo de ratificação e promulgação.
No entanto, o Acordo é plenamente compatível com o sistema jurídico interno brasileiro. Ao prever a garantia de informação adequada, suficiente, prévia e ativamente prestada aos titulares dos direitos socioambientais, vai ao encontro do subsistema normativo de acesso à informação (cujo principal marco é a Lei nº 12.527/2011).
Na transparência socioambiental, a Lei nº 6.938/1981 traz em seus objetivos a necessidade de divulgação das informações sobre meio ambiente, além da Lei nº 10.650/2003, a chamada Lei de Acesso à Informação Ambiental.
No mesmo sentido, a garantia de participação social nas tomadas de decisão em matéria ambiental aparece, por exemplo, na Lei nº 9.433/1997 (Política Nacional de Recursos Hídricos) e na Lei nº 12.187/2009 (Política Nacional sobre Mudança do Clima), assim como a previsão de acesso à justiça socioambiental (que tem sido exercida através da ação civil pública da Lei nº 7.347/1985).
Por fim, a compatibilidade com o arcabouço constitucional é evidente, em especial com o enunciado do art. 225 da Constituição, que traz a garantia de instrumentos para a proteção do direito, das gerações presentes e futuras, ao meio ambiente.
No entanto, o direito interno não tem sido suficiente para garantir a transparência e participação em matéria ambiental. Em Policy Paper recente da organização da sociedade civil “Transparência Internacional” (2021), constatou-se que, apesar da legislação avançada no país e boas práticas, ainda há uma série de restrições para a plena garantia desses direitos e, principalmente, para a proteção de defensores do meio ambiente.
A ratificação do acordo contribuiria para a garantia desses direitos, o que seria fundamental para evitar impactos severos na dimensão ambiental e a ocorrência do fenômeno do “ecocídio”, que pode ser compreendido como “dano extenso que cause a destruição ou perda de um ou vários ecossistemas num determinado território”, de modo que se comprometa o gozo de direitos fundamentais (Higgins, 2015, p. 62).
A título de exemplo, no bioma do Pantanal foram registrados 2.534 focos de incêndio no primeiro semestre do ano de 2020, ou seja, um aumento de 158% em relação ao mesmo lapso temporal de 2019, considerando dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Fapesp, 2020). Mais da metade das áreas em chamas se concentra em áreas antropizadas e a destruição foi em escala sem precedentes, estimando-se que uma perda de cerca de 20% da vegetação pantaneira.
O bioma da Amazônia também apresenta dados alarmantes; neste caso, de desmatamento, tendo chegado a 196 km² em janeiro de 2021, conforme monitoramento via satélite do Sistema de Alerta do Desmatamento. O aumento das taxas de desmatamento é de 46% de agosto de 2020 a janeiro de 2021, em comparação ao mesmo período do calendário anterior (Imazon, 2021).
Nesse contexto, outro fator importante é que é pacífico o entendimento acerca da obrigação de status consuetudinário – e também prevista em tratados vinculantes – de harmonização do ordenamento interno à normativa internacional, seja pela revogação ou supressão de normas incompatíveis ou pela elaboração normativa em prol da efetiva observância dos direitos internacionalmente consagrados.
Aqui, no entanto, trata-se de hipótese em que competiria ao chefe do Executivo o ato discricionário de encaminhar o Acordo de Escazú ao Congresso Nacional, para que se complete o ciclo de vinculação a instrumento internacional claramente convergente com o sistema normativo nacional. Os benefícios, em termos da teoria da qualidade da lei, também são claros.
Como apontado em artigos anteriores nesta série, a Legística material preocupa-se com o planejamento, a utilidade, a harmonização da norma com o sistema jurídico vigente e com a avaliação de seus impactos.
Nesse sentido, ultrapassa-se mera exigência de clareza e coerência da norma para se esperar efetiva coerência sistêmica, o que também leva à produção de normas mais adequadas e eficazes. Certamente a ratificação e promulgação do Acordo de Escazú atende a esses requisitos.
Além disso, a Legística desenvolveu metodologias para a concretude da mensuração dos efeitos de atos normativos, sejam eles sociais, econômicos ou ambientais. Sob todos esses aspectos, a ratificação do referido instrumento internacional impactaria positivamente o Brasil.
Talvez já estejam aqui esclarecidos os positivos impactos esperados nas esferas ambiental e de direitos humanos. Se há dúvidas acerca dos impactos econômicos, basta que se considere as crescentes pressões de empresários, bancos e investidores, nacionais e internacionais, para que o Brasil volte ao rumo do protagonismo e exemplo em matéria de proteção ambiental.
A ratificação também traria impactos positivos na diplomacia brasileira, melhorando a sua imagem com países tradicionalmente parceiros em matéria comercial, como os Estados Unidos e membros da União Europeia. A análise dos benefícios sistêmicos da ratificação do Acordo de Escazú sob a ótica da Legística, inclusive, permite compreendê-lo no quadro de uma política pública de regulação e de concretização de direitos fundamentais, conformando um sistema integrado de proteção a partir do entrelaçamento entre ordens jurídicas interna e internacional.
A inércia para ratificação do acordo é representativa da realidade da pauta socioambiental no biênio 2019-2020, inclusive na esfera legislativa. Recente relatório divulgado pela Plataforma Parlametria pela Rede de Advocacy Colaborativo (RAC) demonstrou que, apesar de um grande volume de proposições legislativas apresentadas nos dois primeiros anos da atual legislatura, poucas foram as efetivas políticas públicas na área.
Se é verdade que a agenda do Poder Público foi dominada pela Reforma da Previdência em 2019 e pelo enfrentamento da pandemia da Covid-19 desde 2020 (IDS, 2021), isso não foi fator impeditivo para a atuação conjunta do Executivo e Legislativo para avançar outros temas de interesse.
Apesar disso, houve intensa mobilização da oposição e estabelecimento de acordos com partidos de centro e centro-direita para impedir modificações normativas avaliadas como negativas para a pauta socioambiental.
Nesse sentido, parlamentares apresentaram diversos Projetos de Decretos Legislativos em face de atos infralegais socioambientais do governo que exorbitaram a delegação legislativa (art. 49, V da CRFB/88).
Também houve considerável número de ações no Supremo Tribunal Federal, que, em alguns casos, geraram liminares e decisões definitivas desfavoráveis à agenda socioambiental do Executivo (IDS, 2021).
O quadro geral mostra, portanto, que há bastante espaço para impulsionar a governança e a democracia socioambientais no Brasil. O episódio do Acordo de Escazú é apenas uma ilustração disso.
Referências bibliográficas
FAPESP. Recorde de queimadas no Pantanal em 2020. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/recorde-de-queimadas-no-pantanal-em-2020/#:~:text=O%20Pantanal%20registrou%202.534%20focos,de%20Pesquisas%20Espaciais%20(Inpe)>.
HIGGINS, Polly. Eradicating Ecocide: laws and governance to stop the destruction of the planet. 2 ed. London: Shepheart-Walwyn, 2015.
INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL. Painel Parlamento Socioambiental. Relatório Parlametria: proposições legislativas socioambientais no Congresso Nacional (2019/2020). Rede de Advocacy Colaborativo, 2021.
IMAZON. Desmatamento na Amazônia chega a 196 km2 em janeiro de 2021. Disponível em: https://imazon.org.br/imprensa/desmatamento-na-amazonia-chega-a-196-km²-em-janeiro-de-2021/#:~:text=O%20desmatamento%20na%20Amazônia%20chegou,as%20áreas%20desmatadas%20na%20região>.
TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL. Acordo de Escazú: uma oportunidade de avanços na democracia socioambiental e no combate à corrupção no Brasil. Policy Paper, 2021.
Bianor Saraiva Nogueira Júnior – Doutor em Sociedade e Cultura (UFAM). Doutorando em Direito (UFMG). Professor adjunto em Direito (UEA). Procurador federal (PFG/AGU). Pesquisador no Observatório para Qualidade da Lei.
Caroline Stéphanie Francis dos Santos Maciel – Advogada especializada em Relações Governamentais e Direito Legislativo. Doutoranda em Direito (UFMG). Pesquisadora no Observatório para a Qualidade da Lei e no LegisLab.
Letícia Soares Peixoto Aleixo – Doutoranda em Direito (UFMG). Pesquisadora no Observatório para a Qualidade da Lei, no LegisLab e na Clínica de Direitos Humanos da UFMG.