Hábitos e costumes de povos indígenas, o movimento nas periferias das grandes cidades, experiências religiosas místicas, a vida de adolescentes em situação de risco, a organização de mulheres muçulmanas – e muito mais. Tudo isso está registrado no vasto acervo audiovisual do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (Lisa) do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Disponível no sistema Vimeo – serviço de compartilhamento de vídeos na internet -, encontra-se a produção audiovisual do laboratório: são cerca de 50 filmes etnográficos, produzidos entre 1994 e 2015. Além disso, o acervo do Lisa é formado por cerca de 1.600 vídeos, mais de 8 mil fotografias e cromos, fitas cassete, discos, CDs, livros, teses e catálogos, disponíveis para consulta no laboratório. Esse material é o resultado das atividades acadêmicas realizadas no departamento – como eventos, palestras, conferências, apresentações de dissertações de mestrado e defesas de teses de doutorado. “Nosso foco principal é a produção audiovisual relacionada aos trabalhos realizados pelos professores, alunos de iniciação científica, mestrandos, doutorandos e pós-doutores”, afirma a professora Rose Satiko Hikiji, coordenadora do Lisa. Boa parte do acervo encontra-se digitalizada e arquivada em hard disk, com backup em nuvem computacional da USP.
Visão xamânica – Conhecer o acervo do Lisa é fazer uma fascinante viagem rumo a aspectos pouco conhecidos da vida humana. Tome-se como exemplo um dos documentários disponíveis, Apapaatai, dirigido por Aristóteles Barcelos Neto. O vídeo mostra a visão xamânica do mundo dos espíritos dos índios wauja, do Alto Xingu. Na explicação de um dos índios, que fala português, os apapaatai são raptores de almas humanas e os principais causadores das doenças e também da cura. A cura e a proteção contra as doenças acontecem durante os festejados rituais de máscaras, flautas e clarinetes. “Os apapaatai são a ‘vacina’ dos wauja”, explica o índio.
Tradicionalmente, o destino final das máscaras é a destruição pelo fogo. Porém, desta vez, ao final do ritual, as máscaras tomaram um destino incomum: enviadas para a França, foram apresentadas no Festival de Radio France e Montpellier e, em seguida, incorporadas ao acervo do Museu du quai Branly, de Paris. O vídeo conta que, desde 1997, as máscaras feitas em grandes rituais apapaatai têm sido vendidas para colecionadores particulares e museus.
Outro destaque do acervo é o documentário Vende-se Pequi, dirigido por André Lopes e João Paulo Kayoli. O povo manoki, no noroeste de Mato Grosso, vende pequi nas estradas. O filme retrata um grupo de jovens, numa oficina de vídeo, tentando apresentar para o mundo um pouco de suas aldeias e do processo de coleta e venda desse fruto. Instigados pela possibilidade de filmar e ser os próprios protagonistas, eles saem à procura dos idosos do lugar, numa tentativa de descobrir se existe algum mito sobre o pequi. A elaboração desse filme foi um processo inteiramente compartilhado entre realizadores indígenas e não-indígenas: desde a concepção e filmagem até a edição e finalização. Todas as imagens do filme foram realizadas pelos próprios manoki.
O documentário A Arte e a Rua, dirigido por Carolina Caffé e Rose Satiko Hikiji, se passa na Cidade Tiradentes, distrito do extremo leste da cidade de São Paulo, que abriga o maior conjunto habitacional da capital, com 50 mil unidades e 250 mil moradores – resultado de um programa governamental de criação de unidades habitacionais para abrigar a população de baixa renda.
O vídeo mostra os gestos, as cores e as rimas que marcam a Cidade Tiradentes, através da street dance, do grafite e do rap. Destaca que a experiência da periferia é a base e o motivo da produção dos artistas da Cidade Tiradentes, que cresceram com o distrito paulista e, em suas obras, dialogam com seus desafios e sonhos. O filme segue a vida e as transformações da arte de rua, com a urbanização marcada pela exclusão. Com ela a população trata suas dificuldades com dinâmicas próprias de sociabilidade, moradia e apropriação do território.
Outra produção audivisual, Al-Masoom – Wonder Women, dirigida por Sylvia Caiuby Novaes, professora do Departamento de Antropologia da FFLCH, pesquisadora e fundadora do Lisa, retrata a organização de mulheres muçulmanas paquistanesas que vivem em Manchester, na Inglaterra. O vídeo revela que essas mulheres possuem uma forte noção de identidade étnica, cultural e de gênero, desenvolvida em boa parte graças ao seu envolvimento político com os problemas contemporâneos – entre eles, os campos de refugiados muçulmanos na Bósnia e na Kashemira. As mulheres retratadas no filme organizam manifestações contra a tortura, coletam roupas e suprimentos para os refugiados e se fazem visíveis através de ajuda humanitária. Sylvia coordenou o Lisa desde a sua fundação até o ano passado e hoje é diretora do Centro Universitário Maria Antonia (Ceuma) da USP.
O acervo também conta com registros fotográficos que documentam as pesquisas dos etnólogos alemães naturalizados brasileiros Herbert Baldus (1899-1970) e Curt Nimuendajú (1883-1945) e do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009).
Ainda entre os registros fotográficos, o Lisa dispõe de uma coleção de fotos em papel de Lux Vidal, professora do Departamento de Antropologia da FFLCH, que trabalhou durante anos com os kayapó-xikrin, indígenas que vivem em aldeias dispersas ao longo do curso superior dos rios Iriri, Bacajá, Fresco e outros afluentes do rio Xingu.
Os ensaios fotográficos são registros de um olhar numa perspectiva antropológica. O que está em jogo não é a representação do universo da pesquisa, e sim o cruzamento do olhar do pesquisador com o sujeito, reflete a professora Sylvia Caiuby Novaes. “É um olhar que busca entender a cidade e seus habitantes, cidades que encantam e que com a câmera na mão descobrimos nem sempre conhecer. São nossos olhares sobre espaços e atividades que de algum modo nos fascinam, a busca da expressão de uma realidade vivenciada na pesquisa de campo, dos encontros e desencontros que vivenciamos como antropólogos.”
Projeto temático – O Lisa não para. Em constante produção, o grupo de pesquisadores do Lisa está em processo de finalização do Projeto Temático A Experiência do Filme na Antropologia, coordenado pela professora Sylvia Novaes, com apoio da Fapesp. Desenvolver formas narrativas que venham somar ao texto verbal é o objetivo do projeto temático. Trabalha-se com imagens e sons, seja por meio da análise da documentação audiovisual, seja por meio da produção de resultados de pesquisas. Outro subproduto do projeto temático é a revista acadêmica on-line GIS – Gesto, Imagem e Som, que está em processo de produção.
Em fase de finalização, o curta-metragemFabrik Funk, dirigido pela professora Rose Hikiji, Sylvia Caiuby Novaes e a antropóloga canadense Alexandrine Boudreault-Fournier, é uma etnoficção, uma mistura de documentário e de ficção na área da antropologia visual sobre o funk na Cidade Tiradentes, em São Paulo. Segundo a pesquisadora, essa produção é fruto de colaboração entre a USP e a Universidade de Victoria, no Canadá. O documentário foi realizado na época da Copa do Mundo de 2014 e traz como protagonistas os moradores da Cidade Tiradentes, sendo que alguns interpretam as suas próprias histórias de vida.
O documentário Um Baile para Matar Saudades, também em fase de acabamento, foi realizado pela pós-doutoranda Erica Giesbrecht. Fruto de pesquisa em uma comunidade negra de Campinas (SP), ele mostra mulheres e homens negros, com idades entre 70 e 90 anos, que são ativos no movimento cultural negro da cidade, essencialmente dedicado à recriação de repertórios musicais afro-brasileiros tradicionais. Embora sejam considerados mestres nas comunidades musicais atuais, suas memórias de mocidade não remetem diretamente a jongos, sambas de bumbo ou maracatus, mas a bailes de gala. Na conjuntura marcada pela segregação dos anos 40 a 60, no interior de São Paulo, esses bailes, frequentados majoritariamente por negros, são revisitados, evidenciando sua importância para a formação de uma comunidade negra iniciada no passado e continuada no presente.
Entre 2000 e 2014, as pesquisas do Lisa geraram 50 documentários. A professora Rose explica que o acervo de filmes resultantes de pesquisa não é maior em razão do longo tempo – de três a cinco anos – necessário para finalizar cada produção. Outros filmes do acervo são produções externas e doadas ao laboratório.
Grupos de pesquisa – Desde 1995, o Lisa abriga o Grupo de Antropologia Visual (Gravi), coordenado pela professora Sylvia Novaes, que estuda a questão da imagem a partir de uma perspectiva antropológica. Os pesquisadores trabalham com questões voltadas ao mundo das imagens, que podem ser tanto filmes, iconografias, grafite e arte como produções de filmes etnográficos.
Em 2005, o Lisa passou a abrigar o Núcleo de Antropologia da Performance e do Drama (Napedra), coordenado pelo professor John Cowart Dawsey, que discute questões relacionadas à antropologia da performance, do drama e do ritual.
Em 2011, o Grupo Interinstitucional e Interdisciplinar de Pesquisas em Antropologia Musical (PAM) também se integrou ao Lisa, sob coordenação da professora Rose Satiko Hikiji. Ele investiga o diálogo entre a música, a sociedade e a antropologia. Rose explica que é importante para o Lisa, como um laboratório de imagem e som, ter um grupo específico que reflete sobre as diversas sonoridades da música e das paisagens sonoras.
Inaugurado em 1991, hoje o Lisa está instalado em duas unidades do conjunto das Colmeias, favo 10, na Cidade Universitária, e conta com sala com estantes deslizantes, climatizada e desumidificada, para conservação do acervo. Há também um auditório para projeção de audiovisuais, duas ilhas de edição de vídeos, uma sala acusticamente isolada para a edição de som e uma sala com computadores para pesquisa do acervo, entre outros equipamentos.
O acesso é aberto ao público em geral, que pode pesquisar via internet o banco de dados do Lisa. Ali encontra-se a relação completa dos filmes disponíveis e suas sinopses. O sistema de busca pode ser feito por título, diretor e palavras-chave.
O acervo do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (Lisa) do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP pode ser acessado através do site www.lisa.usp.br