Notícia

Jornal da USP

A solidão de quem viveu muito

Publicado em 13 julho 2003

A aposentada Antônia Lopes é viúva, tem 76 anos e, apesar de ter seis filhos e tantos netos que nem consegue enumerar, vive sozinha na comunidade São Remo, no bairro do Butantã, na zona oeste de São Paulo. Ela se sustenta com um salário mínimo por mês e não recebe nenhum tipo de ajuda de ninguém. Antônia é diabética e já teve um início de derrame. A única companhia da aposentada, que sente muitas dores e já não tem vontade de fazer o trabalho caseiro, é a vizinha Maria Joana Celiro, de 66 anos, operária afastada há dois anos do serviço de limpeza pública por problemas de saúde. "Tenho sorte que tenho ela pra ir no médico comigo. Sem ela não sei o que seria de mim", declara Antônia num olhar de agradecimento à amiga. Maria Joana também convive com a solidão. Solteira, sempre cuidou de muitas crianças, trabalhou durante vários anos como empregada e babá, mas nunca teve filhos. Tentou namorar, mas não deu certo porque "o patrão não gostava". Ela sofre de pressão alta, mas se considera completamente independente, apesar de confessar que uma ajuda sempre seria bem-vinda. "Quem fala que não precisa de ajuda é só rico, que tem tudo." As duas amigas têm mais em comum do que a solidão e o bairro onde moram. Antônia e Maria Joana nasceram em Minas Gerais e são analfabetas. Trabalharam na roça desde a infância até a adolescência. Ao invés de estudar, Antônia ajudava a família colhendo feijão, milho e cortando cana. Maria Joana, com cinco anos de idade, já passava seus dias no cafezal. A história dessas mineiras, que vivem há pelo menos 30 anos em São Paulo, se confunde com muitas outras, representadas pelos números do mais recente estudo sobre envelhecimento na capital paulista. Professores da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, em parceria com a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e apoio da Fapesp, fizeram um trabalho que traça o perfil do idoso, com 60 anos e mais, que residia no Município de São Paulo no ano 2000. Os moradores dessa faixa etária equivalem a 9,3% da população da capital, mais de 850 mil pessoas. Foram entrevistados 2.143 idosos para o estudo, denomiado "Saúde, bem-estar e envelhecimento" (Sabe). E, apesar de a maioria, 87%, viver acompanhada, a coordenadora da pesquisa, professora Maria Lúcia Lebrão, chama a atenção para os 13% que vivem sozinhos, porque quantitativamente representam um grande número. "Os 13% representam mais de 100 mil pessoas (110.740) que vivem sozinhas, que têm dependências nas atividades básicas diárias, mas não têm ninguém." De acordo com os dados da pesquisa, há cinco anos 6% das pessoas com idade acima de 60 anos moravam sós. Para a professora, a razão para o número de solitários ser tão alto é também uma questão cultural. "Hoje não se tem mulheres em casa o dia inteiro para tomar contar dos idosos, todo mundo vai para a rua trabalhar. Por isso, o governo precisa substituir essas mulheres." Embora apenas 13% dos idosos morem sozinhos, sete de cada dez pessoas que fizeram parte do estudo disseram que não contam com ninguém para ajudá-las. As maiores dificuldades relatadas por elas foram tarefas simples e corriqueiras como se vestir, deitar e levantar (veja a tabela abaixo). Analfabetismo - A idade média dos idosos em São Paulo é 68 anos. A maioria da população mais velha, 60%, é formada por mulheres. O estudo registrou um número que assusta: 21% dos idosos não sabem ler nem escrever e 60% estudaram menos de sete anos. A baixa escolaridade colocou o Brasil no topo do ranking entre os outros países participantes da pesquisa promovida pela Opas: Argentina, Barbados, Chile, Costa Rica, Cuba, México e Uruguai. Quando o universo de estudo analisado é dos idosos com 80 anos e mais, o índice de analfabetismo fica ainda maior, passando para 39%. Maria Lúcia acredita que esses números estão diretamente ligados a um outro dado revelado na pesquisa: quase dois terços dos idosos entrevistados moraram na zona rural até os 15 anos de idade por um período de pelo menos 5 anos. "Esse número tão grande de pessoas que viveram na zona rural teve um acesso deficitário ou menor à escola", diz a professora. As duas vizinhas da comunidade São Remo legitimam essa pesquisa. Não tiveram chance de estudar no campo quando crianças e, depois de adultas, em São Paulo, o trabalho sempre vinha em primeiro lugar. Maria Joana se orgulha de dizer que sabe pelo menos assinar seu nome, e com bastante dificuldade as letras vão se formando vagarosamente no papel. Maria Lúcia prevê que o aspecto da baixa escolaridade mude nos próximos anos. "As nossas condições de vida são muito diferentes, as pessoas foram tendo mais acesso ao estudo", analisa. "Tenderemos a melhorar." A pesquisa também mostrou uma relação da pouca escolaridade com a auto-avaliação do estado de saúde. No total, 44,7% classificaram sua saúde como boa ou muito boa e 55,1% responderam regular ou má. Entre os idosos sem escolaridade, a porcentagem dos que disseram regular ou má sobe para 65,7%. O número é ainda maior entre as mulheres com idade entre 60 e 74 anos nas mesmas condições: 73,4%.