Na intensa agenda musical paulistana há alguns eventos especiais. Ao lado de orquestras e artistas internacionais, concertos como os que a Sala São Paulo apresentará entre hoje e domingo são obrigatórios para quem deseja manter-se atualizado.
Os pianistas Heloísa e Amílcar Zani, com o Coral Sinfônico da OSESP, sob a regência de Naomi Munakata, apresentam em Ia audição no Brasil a obra "Die gluckliche Hand" (A Mão do Destino) de Arnold Schoenberg (1874-1951), na versão para 2 pianos e canto feita por Edward Steuermann. Compondo o programa, estão a Sinfonia de Câmara n° 1 op. 9, também de Schoenberg, em versão do autor para piano a 4 mãos e as Liebes-lieder Walzer op. 52 para coral e piano a 4 mãos de Brahms.
Um programa desses só acontece por causa da ousadia de seus intérpretes. A carreira de Naomi Munakata tem se destacado pela busca de um repertório diferenciado cuja realização tem a marca de sua fina sensibilidade. Heloísa e Amílcar Zani, por sua vez, aliam uma profunda experiência pedagógica às suas capacidades de intérpretes-pesquisadores. Há muito estudando temas relacionados à Segunda Escola de Viena (Schoenberg, Webern e Berg) e, em especial, a Edward Steuermann - pianista e figura crucial na articulação entre esses compositores e intelectuais da época, tais como Adorno e Leibowitz - o duo recebeu da filha de Edward, o direito de exclusividade para copiar, traduzir e divulgar o acervo deixado por ele. Constituído por correspondências, textos, entrevistas, partituras inéditas e filmes, entre outros documentos, esse acervo é o objeto de uma pesquisa que Amílcar desenvolve com o apoio da FAPESP e que objetiva por à disposição dos interessados, pôr meio de um web site, o acesso direto a essas fontes. Essa empreitada, ao lado de eventos didáticos que o duo vem fazendo, será de grande ajuda para aqueles que desejam se aproximar de um repertório que completa quase cem anos de solidão e de desconhecimento.
Em 1937, em uma conferência na Universidade de Princeton (EUA), Schoenberg expôs ao público a angústia e a solidão que, inevitavelmente, acompanham artistas que se lançam em busca do novo. O título dessa conferência foi profético: "Como alguém se torna solitário". Sofrendo, há décadas, com os ataques da critica, com a recusa do público em acompanhar suas buscas estéticas e com a escassez de intérpretes capazes de compreender sua poética, Schoenberg admitiu que sua música era, sim, difícil. Mahler, um dos compositores mais respeitados por ele havia feito o seguinte comentário, em 1905, a respeito de seu "le Quarteto de Cordas": "regi as partituras mais difíceis de Wagner e eu mesmo escrevi páginas com mais de 30 pautas. Agora, você me traz uma partitura na qual há somente 4 pautas e eu me sinto incapaz de lê-la..." Diante disso, Schoenberg reconhece que nessa peça, "além do caráter contrapontistico complexo que torna essa escrita tão difícil, há algo ainda pior: as partes melódicas evoluem autonomamente umas em relação às outras e produzem harmonias tão móveis e novas, que o ouvido não consegue captar-lhes o sentido". Quase um século se passou e o problema persiste: a música de compositores que optaram por dar continuidade às transformações estético-perceptivas ainda busca interlocutores. Schoenberg pôs o dedo na ferida - o ouvinte não consegue apreender confortavelmente o sentido - e talvez seja essa a razão primeira de seu afastamento. Historicamente, foram Schoenberg e seus discípulos Webern e Berg os primeiros compositores a ocupar o nicho considerado o mais hermético do século XX: o dodecafonismo e seu posterior desdobramento, o serialismo. No âmbito da música ocidental de concerto, até o final do século XIX, o sentido de uma peça era apresentado ao ouvinte por meio de elementos que favoreciam sua identificação, seu reconhecimento e sua memorização. A existência desses elementos era a condição inicial para uma fruição relaxada e "agradável". Temas construídos de acordo com a hierarquia do sistema tonal - notas e acordes principais que subordinam os demais, dissonâncias e tensões que repousam em consonâncias, entre outros - confirmam a estabilidade e a fluidez de um discurso teleológico. Em um contexto como esse, o percurso auditivo se realiza sem sobressaltos e inseguranças e há, para o ouvinte, uma confirmação que atesta suas capacidades de leitura e compreensão da obra. É isso que Mahler levanta em seu desabafo: os pontos de referência dados pelo idioma tonal foram transformados. Consonâncias e dissonâncias passaram a ser exploradas por seus efeitos de timbre e não mais como oposição, harmonias que se libertam do jogo causa e conseqüência levam o ouvido à experiência da multidirecionalidade, pequenas células rítmico-melódicas fragmentam a melodia em unidades de 2 ou 3 sons com grande concentra¬ção de informação, entre outros.
Novos comportamentos perceptivos aparecem: experiências de descentramento, de estar à espreita ou à deriva, de lidar com o provisório e com o ambíguo. Se para alguns essa é a grande oportunidade de ampliação de horizontes sensíveis e existenciais, para muitos a situação é paralisante. A angústia de não poder prever nem acompanhar racionalmente o desenrolar de uma obra se torna insustentável e, assim, o velho e seguro repertório tonal se torna um refúgio. O único antídoto contra isso é a freqüentação: aproximar-se, insistir, tentando perceber o que a obra traz: novos timbres, sonoridades, construções formais, múltiplas vivências temporais, cruzamentos multissensoriais, diferentes formas de atuação da memória, entre tantos outros, são conteúdos perceptivos que estimulam nossa fantasia e quebram o automatismo de nossa escuta.
Em "A Mão do Destino", drama com música composto entre 1910 e 1913 para 2 atores, 1 solista e 2 coros (um feminino e um masculino), Schoenberg idealizou um espetáculo sonoro-visual repleto de cores e formas plásticas que seriam criadas por um de seus amigos, Kandinsky ou Kokoschka. Nessa época, o compositor desenvolvia intensa atividade como pintor e as tentativas de unir sons, luzes e cores estavam na imaginação de artistas e cientistas. Teclados acoplados a projetores que difundiam cores e imagens foram inventados, possibilitando a criação de obras tais como o "Prometeu" de Scriabin. Na partitura de "A Mão do Destino", Schoenberg indica cerca de 70 sinais de mudanças de cores durante o desenvolvimento das 4 cenas. O tema do drama - a angústia do homem que, mesmo consciente de sua impotência, busca o inatingível - é tipicamente expressionista e evoca Sísifo, aprisionado em uma temporalidade que conjuga recorrência e eternidade. Nas partes vocais, por meio de melodias, sussurros e canto falado (sprechs-timme), o solista se expressa em um clima de irrealidade e as intervenções dos coralistas soam como as de um coro em uma tragédia grega. Um pequeno grupo instrumental, fora do palco, sobrepõe sua textura à da orquestra, em uma estrutura que mantém, da tradição, a repetição de temas, as divisões formais claras e o uso de ostinatos e simetrias.
A Sinfonia de Câmara n° 1 foi composta em 1905, para 15 instrumentos. Antes de estreá-la, Schoenberg realizou 10 ensaios abertos para facilitar sua compreensão pois, apesar de ter subdivisões formais nítidas - Exposição e Scherzo (nos quais os temas principais são apresentados). Desenvolvimento, Adágio e Recapitulação - o material temático baseia-se em uma seqüência, incomum para a época, de intervalos de 4" e de tons inteiros. As harmonias ora polarizam determinados acordes ou notas, ora se afastam, provocando, ao mesmo tempo, a expansão e o enfraquecimento da tonalidade. Segundo Schoenberg. essa obra possui "uma estreita interação entre melodia e harmonia, uma e outra assegurando a fusão das relações tonais afastadas em uma perfeita unidade".
É importante que nossos ouvidos sejam expostos a esse repertório e que programas como esses sejam apresentados com maior freqüência. O único perigo, como disse Stravinsky a respeito da música de Debussy, é que a gente comece a gostar demais...
Notícia
Gazeta Mercantil