A orgulhosa pesquisa científica da era soviética sucumbiu à maior fuga de cérebros já vista em tempo de paz
WASHINGTON - Cora 27 anos de idade, Elena Bourganskaia poderia estar contribuindo para o futuro da saúde pública na Rússia. Formada em medicina em Moscou, ela é curiosa, ativa, sofisticada em suas opiniões sobre o papel da ciência moderna na saúde pública. Mas está trabalhando nos Estados Unidos e tão cedo não quer voltar à Rússia, a não ser para uma visita. Conhece bem os sistemas de saúde americano e russo. Este último é frustrante, segundo ela. "A pesquisa básica se desintegrou. Não há estudos controlados de caso, a metodologia estatística é falha. Estão fazendo tudo por palpite."
Já bem entrado na casa dos 40, Ilmur Urmanovo devia estar trabalhando com um microscópio numa das principais instituições científicas da Rússia, na sua pesquisa para criar vacinas para algum dos vários vírus que varrem o país. Antes um destacado cientista no Centro de Pesquisas de Virologia e Biotecnologia em Koltsovo, Sibéria, Urmanov ajudou a desenvolver em 1993 uma vacina para o treponenia pallidum, uma forma de sífilis. Mas um ano depois mudou-se para os EUA, onde trabalha como pesquisador no Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas em Bethesda, Maryland. "Tentei desesperadamente ficar na Rússia", explica. "Com alguns colegas, tentei montar uma firma científica, para ganhar dinheiro e tocar alguns projetos de pesquisas do governo. Mas vi que não podia sustentar minha família nem continuar a exercer a contento minha profissão. Aqui faço pesquisas que não se comparam com o que eu fazia na Rússia. Lá, eu não tinha nada...
Numa região onde os índices de expectativa de vida caíram drasticamente, devido a propagação de doenças, abuso de álcool e drogas, nutrição deficiente, crônica falta de verbas para instalações médicas e isolamento dos avanços científicos ocidentais, pode-se fazer rapidamente pouca coisa para estancar a hemorragia, segundo especialistas internacionais. Mas os especialistas dizem que o problema poderia ser resolvido a longo prazo se os governos mantivessem duas prioridades: transformar a ciência epidemiológica em toda a região, para criar um centro confiável de informações; e agir rápida e energicamente para deter a maior fuga de cérebros em época de paz na história mundial.
"É realmente assombroso", diz o Dr Alexi Savinikh, da Medsoceconinform, empresa de assessoria em Moscou. "Assim, decidimos realizar um grande encontro de todas as diferentes partes da nossa comunidade científica para discutir a ciência russa no século 21, pois não sabemos realmente para onde estamos indo nem o que está acontecendo na ciência." De acordo com a Academia de Ciências, pelo menos 15.000 profissionais de saúde e ciência emigraram da Rússia para o Ocidente nos últimos seis anos.
Em sua investigação dos problemas de saúde pública na região, Newsday descobriu vários temas recorrentes que provavelmente provocaram o êxodo em massa. Alguns deles: extrema dificuldade de conseguir um sustento adequado; descrédito do público, provocado pelo emprego da ciência para objetivos políticos no passado; uma deficiente infra-estrutura médica e científica, que torna impossível fazer ciência séria; e falta de oportunidades de treinamento.
Na cidade siberiana de Cheliabinsk, o físico Vladimir Nechai, diretor do centro nuclear, suicidou-se em outubro de 1996, depois de ficar, ele e sua equipe, quatro meses sem receber salário. Vladimir Strakhov, diretor do Instituto Smith de Física da Terra em Moscou, protestou contra a falta de pagamento do governo a sua agência fazendo uma greve de fome de duas semanas.
Antigamente situado entre os membros mais bem pagos da sociedade russa, o cientista que trabalha hoje ganha em média apenas 500.000 rublos por mês (US$ 88), muito menos que a média dos garçons em restaurantes de Moscou. E há consideravelmente menos empregos disponíveis - o número de cientistas pesquisadores e técnicos empregados caiu de 3,4 milhões em 1985 para 1,3 milhão apenas 10 anos depois. De acordo com o Centro de Pesquisa Científica e Estatística de Moscou, os cientistas estão entre os profissionais de nível mais baixo na estima pública. Receberam um índice de aprovação de 6%, os jornalistas 16% e os médicos 20%. Bem à frente, no alto da lista, estavam empresários, com 46% de aprovação.
O Instituto Gamaleia de Pesquisas Biológicas da União Soviética - durante 70 anos a principal instalação científica do país - hoje arrenda a maior parte de seu terreno e do espaço de escritórios a pequenos empresários, uma cervejaria e uma garagem de estacionamento, para pagar impostos, contas de aquecimento e energia elétrica, segundo seu diretor, Serguei Prozorovskii. "Em 1991", diz ele, tínhamos uma equipe de 1.000 pessoas; 300 eram PhD e 70 eram professores. Agora, temos 600, inclusive os mesmos 70 professores, porque não têm para onde ir." Filosófico, Prozorovskii divide os cientistas da extinta União Soviética em três categorias: foragidos, sobreviventes e fanáticos. Segundo ele, os foragidos são os que formam no exterior uma diáspora de mais de 10% dos especialistas da região. Os sobreviventes descobriram que precisam ganhar dinheiro de várias maneiras fora dos laboratórios e muitas vezes só aparecem quando o cheque do salário está disponível. E os fanáticos? "Comparecem ao instituto apesar da situação", diz Proozorovskii. "Dadas as circunstâncias, fazem o que podem. Acho que compareceriam mesmo se começássemos a lhes cobrar uma taxa."
Pouco depois do encontro com Newsday, Prozorovskii sofreu um ataque cardíaco fatal. Seu colega, o Dr Ed Korenberg, diz que o coração de Prozorovskii não suportou assistir à destruição de seu instituto. Sentado ali perto, durante a entrevista de Prozorovskii, Korenberg a certa altura cochichou: "Acho que sou um fanático." Ele disse que dificilmente faltou a um dia de trabalho em seu laboratório de zoologia, mesmo no período de setembro de 1996 a janeiro de 1997, quando ninguém recebeu salário, e de fevereiro a abril deste ano, quando Boris Yeltsin deixou de pagar aos cientistas do país inteiro.
Durante 35 anos, Korenberg, que está com 65 anos, estudou o vírus da encefalite transmitido por carrapato e outras doenças. Hoje, se preocupa com a capacidade de Gamaleia pagar as contas de energia elétrica, pois dois freezers guardam todos os frutos de seus anos de trabalho: o maior arquivo mundial de amostras virais da Sibéria e dos Urais. "Se suspenderem o fornecimento de energia elétrica, adeus a tudo isso."
Notícia
Jornal do Brasil