Durante aproximadamente um século, o café definiu a imagem interna e externa do Brasil. Principal produto de exportação de um país que, desde o início da colonização, teve sua economia voltada para o mercado externo, a semente do fruto do arbusto da família Rubiaceae determinou todo um perfil econômico, social, político e cultural.
No final do século XIX, com uma produção anual de 9,3 milhões de sacas, o Brasil atendia a dois terços do mercado internacional. A produção brasileira elevou-se para 19,9 milhões de sacas na safra de 1906-1907. E atingiu a cifra de 28,9 milhões de sacas na safra de 1929-1930.
Esse crescimento desmedido, que excedia a capacidade de consumo, bem como as políticas econômicas que viabilizavam o cultivo ao longo da Primeira República (1889-1930) entraram em colapso em uma quinta-feira que ficou na história. Foi no dia 24 de outubro de 1929, quando a quebra da Bolsa de Nova York arrastou toda a economia capitalista mundial para a Grande Depressão.
As consequências econômicas, sociais e políticas desse episódio no Brasil são bem conhecidas: crise de superprodução, fim da hegemonia da oligarquia cafeeira paulista, Revolução de 1930, ascensão de Getúlio Vargas ao poder. Menos conhecido foi o ato posterior de Vargas para compensar o Estado de São Paulo pela derrota sofrida na chamada “Revolução Constitucionalista” de 1932 e ao mesmo tempo fortalecer o controle federal sobre a produção cafeeira, com a criação da Estação Experimental de Café de Botucatu, no oeste paulista, em 1934.
Essa história, com suas causas, contexto, principais componentes e consequências, está sendo contada agora pelo livro A encyclopédia viva da moderna cultura cafeeira no Brasil, de Jefferson de Lara Sanches Júnior, publicado com apoio da Fapesp.
O livro resultou da dissertação de mestrado de Sanches Júnior, orientada por Cristina de Campos, professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica, do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp.
“O trabalho é bastante original porque quase toda a historiografia produzida no Brasil sobre o café se concentra nos aspectos econômicos, sociais e políticos, mas há bem poucos estudos sobre as tentativas de inovação científica e tecnológica. Apesar de Jefferson ter feito uma pesquisa exaustiva e abrangente, seu livro enfatiza exatamente esse aspecto, quase sempre negligenciado”, disse Campos à Agência FAPESP.
Como fontes primárias, Sanches utilizou os relatórios produzidos na Estação Experimental de Café de Botucatu no período de 1934 a 1945. E também artigos e livros escritos pelos idealizadores dessa instituição, bem como boletins do Ministério da Agricultura e periódicos publicados na cidade de Botucatu no período. Além disso, como fontes secundárias, ele percorreu a vasta bibliografia produzida sobre o café no Brasil.
Segundo o historiador, atualmente doutorando na Unicamp em História Social da Ciência e Tecnologia no Programa de Pós-Graduação de Política Científica e Tecnológica, o objetivo principal da Estação Experimental de Café de Botucatu foi promover a melhoria da cafeicultura brasileira, pois, apesar da liderança mundial do país em termos quantitativos, o produto oferecido pelo Brasil aos consumidores internacionais era bem inferior ao de algumas nações concorrentes, como a Colômbia, por exemplo.
“A estação buscava atender especialmente as novas lavouras surgidas no Estado de São Paulo, nas áreas alcançadas pelas ferrovias da Alta Sorocabana, da Alta Paulista e da Noroeste, abarcando as regiões de Botucatu, Bauru, Ourinhos, Marília, Assis, Presidente Prudente, rumo às barrancas do rio Paraná, a oeste, e do rio Paranapanema, a sudoeste. O café produzido nessas regiões, em propriedades pequenas e médias, era pior do que o das regiões mais antigas, da Baixa Paulista e da Mogiana, especialmente Ribeirão Preto e Franca. Essas áreas de cafeicultura antiga, dominadas pelas grandes propriedades, já eram atendidas pelo Instituto Agronômico de Campinas”, afirmou.
A estação havia sido pensada na Primeira República, nos anos 1920. Mas só foi realmente efetivada na década de 1930, após o crack da Bolsa, a crise de superprodução, a queima de 40% da produção de café para sustentar o preço no mercado internacional, também conhecida como “cota de sacrifício”, e o processo de centralização do poder empreendido por Vargas após a Revolução de 1930 e a derrota da oligarquia paulista em 1932.
Para viabilizar o projeto, o governo federal adquiriu duas das muitas fazendas que haviam pertencido ao Barão de Serra Negra, um dos maiores cafeicultores do Segundo Reinado, datadas da década de 1880. Inaugurada com grande publicidade pelo ministro da Agricultura Odilon Braga (1894 – 1958) em 1934, a estação iniciou suas atividades no ano seguinte, e continuou a funcionar até 1972, quando seu espaço físico passou a abrigar o campus da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu.
“Além do grave revés sofrido pela cafeicultura brasileira com o crack da Bolsa, o contexto caracterizava-se também pela decrepitude dos cafezais da Baixa Paulista e da Mogiana. A chamada ‘vida útil’ de um cafezal, sua fase mais pujante, é da ordem de 20 anos. A planta começa a produzir com cinco e produz de forma constante até os 25. A partir dessa idade, inicia-se o processo de senescência”, informou Sanches.
“Esses cafezais antigos remontavam à década de 1870. E havia a necessidade de reparos e replantio. Ademais, depois da crise de 1929, muitas lavouras de café antigas foram substituídas por outras culturas agrícolas, como o algodão e os cítricos. Então, enquanto no ‘oeste histórico’ do Estado de São Paulo começava a ocorrer uma diversificação da agricultura, o polo dinâmico da cafeicultura deslocou-se para o ‘novo oeste’”, prosseguiu.
Esse “novo oeste”, situado naquilo que era considerado a “boca do sertão”, onde terminava a “civilização do homem branco” e começavam as “terras dos índios”, e integrado ao território nacional pela rede ferroviária, passou a concentrar as esperanças da cafeicultura brasileira. Mas, para melhorar a qualidade do café nele produzido, era necessário um processo de inovação tecnológica.
“Criou-se muita euforia em torno do projeto da estação experimental, que definiu um modelo baseado na experiência da Colômbia. Foram testadas técnicas de hibridação das plantas e prosperou a ideia do sombreamento dos cafezais, para que pudesse ser colhido o fruto maduro, chamado de ‘cereja’ devido à sua cor vermelha. A expectativa era que, colhido maduro, despolpado e processado, o café de tipo arábica produzido nas novas regiões proporcionaria uma ‘bebida mole’, isto é, uma bebida de acidez equilibrada e mais palatável, como a derivada do café colombiano, o favorito dos consumidores norte-americanos”, detalhou Sanches.
Além da melhoria do produto, havia a perspectiva de combate à broca-de-café, um parasita que se instalou nos cafezais paulistas na década de 1920 e fazia com que, muitas vezes, uma saca de 60 quilos só contivesse 17 quilos de grãos aproveitáveis.
Mas a inovação pretendida não ia além desse ponto. O beneficiamento do café exportado cumpria as seguintes etapas: colheita, secagem nos grandes terreiros, descascamento, lavagem e torra. O restante do processo, que incluía a moagem, o porcionamento e o empacotamento, era realizado nos países compradores.
Produção sem inovação
Mesmo limitadas, as mudanças pretendidas teriam configurado uma verdadeira revolução tecnológica na cafeicultura. Mas – e este não foi um caso isolado na história do Brasil – não chegaram a ser implementadas.
Não foram porque a inovação tecnológica produz frutos no médio e longo prazos, enquanto que medidas macroeconômicas, como corte de impostos e rebaixamento do câmbio, geram resultados praticamente imediatos. Em 1937, logo após a instalação do Estado Novo, houve uma revisão dos impostos sobre o café. Isso incentivou os cafeicultores a tocar os negócios como antes, sem investir em tecnologia.
“Ademais, em 1941, com a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, o governo norte-americano passou a implementar a chamada ‘Política da Boa Vizinhança’, visando cooptar os países latino-americanos para o esforço de guerra”, disse Sanches.
“No caso brasileiro, um dos aspectos dessa política foi a assinatura de acordo comercial para a compra do café. Com a venda garantida, os cafeicultores desinteressaram-se ainda mais pela inovação. E isso inviabilizou de vez a introdução de ciência, tecnologia e inovação na cafeicultura durante aquele período”, completou.
Quanto à Estação Experimental de Botucatu, passada a euforia inicial, a proposta esmoreceu. Chamada de “a encyclopédia viva da moderna cultura cafeeira no Brasil” pelo ministro Odilon Braga por ocasião de sua inauguração, frase transformada no título do livro em pauta, a instituição foi perdendo paulatinamente importância. E, já no final do Primeiro Governo Vargas, em 1945, precisou diversificar o seu foco, passando a tratar também de outros produtos, como arroz, essências florestais e óleos essenciais.
Apesar da revolução abortada, a cafeicultura brasileira continuou a dominar o mercado internacional. “Como lembrou o pesquisador norte-americano Steven Topik, o país foi líder inconteste até o ano 2000”, ressaltou a professora Cristina de Campos.
De fato, com uma produção de 43,2 milhões de sacas de 60 quilos em 2015, o Brasil permanece o primeiro produtor mundial, seguido do Vietnã (27,5 milhões de sacas), Colômbia (13,5 milhões de sacas), Indonésia (11 milhões de sacas) e Etiópia (6,4 milhões de sacas) – dados da Associação Brasileira da Indústria de Café. Mas, só em época relativamente recente, e visando atender novos nichos de mercado no país e no exterior, caracterizados por padrões exigentes, é que alguns produtores passaram a investir em café de alta qualidade.
SERVIÇO
Título: A encyclopédia viva da moderna cultura cafeeira no Brasil
Autor: Jefferson de Lara Sanches Júnior
Editora: Editora UFABC
Páginas: 222
Preço: R$ 39,90
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Fonte Jornal da Unicamp