Há muitos anos, o tratamento farmacológico das doenças se baseia no princípio da mesma molécula para muitos pacientes. As pesquisas genéticas - e principalmente o estudo do genoma humano - abre as portas para uma revolução: cada doente poderá receber um tratamento específico para o seu caso. Responsável pela área de Genômica Aplicada dos laboratórios Bristol Myers Squibb, ElIiot Sigal resumiu recentemente em um seminário em Nova Iorque o que até então só era visto em filmes de ficção científica: "Em alguns anos, os doentes receberão tratamento baseado era seu código genético". Um tratamento possivelmente preventivo, com base na predisposição genética de um indivíduo a determinada doença.
Por enquanto, tudo é pesquisa -intensa e avançada. Não se pode, ainda, dizer quando medicamentos desse tipo estarão no mercado. Há apenas uma certeza: o estudo do genoma humano avança com tanta velocidade que as empresas farmacêuticas de todo o mundo estão apostando no desenvolvimento de fármacos baseados na análise do código genético. Todo grande laboratório já introduziu em sua linha de produção o termo "genômica".
Empresas como Smithkline Beecham, Glaxo Wellcome, Pfizer, Novartis, Pharmacia, Merck e Boehringer apóiam financeiramente projetos que buscam identificar os genes anômalos e traçar estratégias terapêuticas para substituí-los ou corrigir sua função.
Tal orientação teve como impulso inicial o Projeto Genoma Humano. Criado em outubro de 1990 com o objetivo de decodificar todo o material genético humano, o projeto chegou à metade este ano. Os dados disponíveis permitem prever a elaboração de mapas genéticos completos, de mapas físicos dos cromossomos e, finalmente, a determinação da seqüência completa do DNA humano.
Decodificação - O projeto deverá estar concluído em 2005. O objetivo é identificar a função entre 50 mil 100 mil genes que formam o DNA humano e determinar a seqüência dos 3 bilhões de pares de combinações químicas que definem esses genes. Até hoje foram identificados cerca de 7 mil genes e em torno de 100 mil pares, de combinações. Com isto foram localizados genes associados a cerca de 60 doenças. Deste trabalho, complementado pela caracterização do DNA de organismos mais facilmente manejáveis, como bactérias e protozoários, participam de forma direta mais de mil pesquisadores de 18 países e, indiretamente, mais mil em outros 50 países. As empresas de biotecnologia envolvidas com o projeto, segundo cálculos do Instituto Nacional da Saúde (NIH) e do Departamento de Energia dos Estados Unidos, vão gerar um volume de negócios superior a US$ 20 bilhões no ano 2000.
Com relação aos investimentos em pesquisa, só se tem dados de verbas públicas. O NIH e o Departamento de Energia dos EUA vão destinar US$ 300 milhões ao projeto este ano. A pesquisa "genômica", no entanto, não representa apenas uma nova fonte de lucros, mas uma mudança que vai afetar a prática médica e a estratégia de lançamento de novos fármacos. Como, aliás, previam os responsáveis pelo projeto desde o início, ao alertar para os importantes debates éticos e sociais que dele poderiam surgir.
Tempo e dinheiro - Hoje, o lançamento de um novo remédio envolve um processo dispendioso que dura em média 14 anos. A fase inicial é a mais complexa, pois é a que leva à descoberta de um princípio ativo potencialmente interessante para tratar uma doença. Esta fase dura de três a quatro anos e requer sofisticadíssimas tecnologias. Tudo para identificar uma molécula que possa ser a base de um novo remédio.
Os grandes laboratórios geralmente buscam estas moléculas entre os produtos naturais, inicialmente em vegetais terrestres, depois em microorganismos que vivem no subsolo e finalmente no fundo do mar. Uma vez identificada a molécula, buscam-se fórmulas análogas que potencializem sua ação e diminuam os efeitos secundários. Através de técnicas de química combinatória e de simulação em computadores são formadas grandes bibliotecas de moléculas. Um grande laboratório pode obter até 10 mil compostos mensais.
Encontrada a fórmula ideal, passa-se para uma etapa de provas biológicas em cultura, o que dura de seis a 18 meses. Em seguida vem a fase dos testes, primeiro com roedores, depois com cães, cavalos, vacas ou ovelhas, primatas e, mais tarde, com seres humanos. No total, mais sete anos de testes. No fim do processo e após testados mil a 10 mil compostos, se terá conseguido um fármaco. O investimento médio foi da ordem de US$ 286 milhões.
As pesquisas "genômicas", dizem os grandes laboratórios, pode reduzir bastante os investimentos de tempo e dinheiro. Estima-se que 55% das descobertas terapêuticas de 1997 têm relação cora impacto genético, ou seja, têm origem em alterações genéticas ou são fruto de alguma função anômala de algum gene. A reposição de um gene anômalo ou mutante por meio da terapia genética, ou a correção da função deste gene através de fármacos que o bloqueiem, tornem inativo ou suprimam, exige menos tempo de pesquisa e desenvolvimento e conseqüentemente orçamentos menores.
Prevenção - A conseqüência imediata de todo este processo é a mais do que previsível reclassificação das doenças em função de seus determinantes genéticos, especialmente as de áreas que concentram o interesse dos cientistas: cardiovascular, oncológica, das enfermidades infecciosas, metabólicas, pulmonares, neurodegenerativas, imunológicas e de tratamento da dor. Em um segundo plano, não menos importante, estariam as alterações devidas ao processo de envelhecimento e à investigação do código genético de agentes infecciosos (bactérias, vírus e parasitas).
Conhecidos os genes e identificadas suas funções, corretas e anômalas, será possível entrar totalmente na era da medicina preventiva, alardeia a indústria farmacêutica. Porque se terá encontrado a fórmula para identificar a predisposição de um indivíduo para padecer de uma enfermidade de origem genética. O tratamento não será só da doença, mas da predisposição.
Os avanços da pesquisa genômica, porém, fazem antever bem mais que novas abordagens terapêuticas. O sucesso do projeto leva a encruzilhadas e o rumo a tomar diante delas está longe de ser definido. A quem caberia por exemplo o controle e processamento da informação genética das pessoas um indivíduo e sua predisposição para desenvolver determinadas enfermidades. Tampouco quem guardará essas informações: os órgãos públicos de saúde, os fornecedores de kits de diagnóstico ou o indivíduo? Entre participantes de um recente seminário científico em Nova Iorque uma questão menos modesta já circulava: dado o conhecimento acumulado e a capacidade tecnológica para corrigir as anomalias genéticas, de que os seres humanos vão morrer?
O MAPA HEREDITÁRIO DOS MALES
A decodificação do genoma humano está levando a que se desvende associações importantes de genes com males de origem complexa, como obesidade, câncer e diabetes. Bem como permitindo localizar as mutações que criam propensão a doenças notoriamente hereditárias.
Um estudo realizado no Instituto Pasteur, em Lille, na França e outro, no hospital Addenbrooke, em Cambridge, na Inglaterra, publicados no mês passado mostraram que um defeito no gene MC4R está associado à obesidade familiar mórbida. O defeito foi identificado em pessoas com história familiar de obesidade severa. Depois, encontrado nos parentes obesos dessas pessoas. A obesidade pode ser desencadeada pelo gene OB, que controla o peso e desencadeia a produção de um hormônio natural, a leptina. Um estudo americano mostrou que este hormônio limita o apetite, aumenta o gasto energético e impede o acúmulo de gorduras em roedores.
Um outro, realizado em 101 famílias na França, detectou níveis altos de leptina em obesos, o que indica insensibilidade ou resistência à substância. No grupo, os pesquisadores encontraram fortes evidências de associação entre o gene OB e a obesidade humana. O gene da leptina também afeta o desenvolvimento sexual. Cientistas da Universidade de Paris observaram que apesar de já serem adultos, três membros obesos de uma família turca ainda não tinham entrado na puberdade.
O risco do câncer de mama é maior em mulheres que têm os genes BRCA 1 e BRCA 2. Mas segundo um estudo publicado no New England Journal of Medicine mulheres com BRCA 1 têm até 45% de chance de desenvolver câncer de ovário; com BRCA 2,25%.
Já o câncer hereditário de colo do útero, que atinge com maior freqüência os judeus asquenazi, é relacionado a um gene denominado APC. Pesquisadores do Centro Médico John Hopkins e do Instituto de Medicina Howard Hughes, da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, descobriram que quem tem a mutação genética detectada no APC tem até 30% mais chances de desenvolver este tipo de câncer.
Uma mutação considerada incomum por especialistas, o Men 1, é responsável pela formação de tumores nas glândulas endócrinas. Segundo pesquisadores do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, em sua forma normal, no entanto, este gene atua como um supressor de tumores.
Médicos do Centro Deke Slayton para Estudo do Câncer do Cérebro, em Seattle, nos Estados Unidos, descobriram que o desenvolvimento de determinados tipos câncer no cérebro e no rim podem ser inibidos por um gene.
A diabetes, que atinge uma pessoa a cada dez acima dos 45 anos, ganhou novas frentes de combate com a descoberta do segundo gene responsável pelo tipo mais comum da doença. Os cientistas estudaram 217 habitantes de uma região da Finlândia, que faziam parte de 26 famílias nas quais três ou mais membros tinham diabetes do tipo 2. Muitas delas tinham o gene NIDDM2 no cromossomo 12, que pode estar ligado à doença. A diabetes do tipo 2 atinge 100 milhões de pessoas no mundo.
No ano passado, pesquisadores da Universidade de Duke, na Carolina do Norte, Estados Unidos, isolaram um novo gene que pode ser o responsável por 20% a 40% dos casos do mal de Alzheimer. O envelhecimento precoce também pode estar ligado à hereditariedade: cientistas americanos identificaram o gene WRN, responsável por uma forma rara de envelhecimento precoce, que faz pessoas de 30 anos parecerem de 80.
Notícia
Jornal do Brasil