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A queima da cana-de-açúcar e a qualidade de seus derivados (1 notícias)

Publicado em 01 de maio de 2008

Estudos confirmam que a queima de cana-de-açúcar além de causar prejuízos ao meio ambiente, ainda interfere na qualidade final da cachaça

A produção de cana-de-açúcar foi impulsionada no Brasil a partir de 1970, pelo Programa Nacional do Álcool (PROÁLCOOL) desenvolvido pelo governo brasileiro para estimular a produção de etanol a ser utilizado como combustível. Atualmente o Brasil possui 25% da plantação mundial de cana-de-açúcar, o que compreende a uma área cultivada de 4,5 milhões de hectares, que produz mais de 11 bilhões de litros de etanol além de 14,2 milhões de toneladas de açúcar e 2 bilhões de litros de aguar dente. A indústria canavieira envolve cerca de 324 usinas de cana de açúcar e mais de 1,1 milhão de trabalhadores rurais. Em particular, a região sudeste, principalmente o Estado de São Paulo, é responsável por cerca de 80% da produção nacional e envolve aproximadamente 400 mil trabalhadores.

Para a fabricação de cachaça são destinados por ano no Brasil mais de 10 milhões de toneladas de cana- de-açúcar. A produção de cachaça ocorre em todas as regiões brasileiras, mas está centralizada nos estados de São Paulo, Pernambuco, Ceará, Rio de Janeiro, Goiás e Minas Gerais. Juntos, estes estados respondem por cerca de 75% da produção nacional.

Geralmente na época da colheita da cana-de-açúcar, que ocorre todos os anos de maio a outubro (região Centro-Sul) e de dezembro a maio (região Norte- Nordeste), a área cultivada de cana é queimada antes do corte. Esta queima facilita a colheita manual, protege o trabalhador rural do corte das folhas afiadas, de insetos, de animais peçonhentos, servindo também para aumentar o teor de açúcar na cana (através da desidratação do tecido vegetal).

As conseqüências da colheita da cana-de-açúcar, por meio do emprego da queima da lavoura da cana, extrapolam o território brasileiro, podendo constituir em um entrave a futuras exportações do álcool para a União Européia. Conforme matéria publicada na Folha Online da BBC Brasil, a União Européia não pretende adquirir do Brasil derivados da cana cuja produção incidam conseqüências ambientais, sociais e trabalhistas decorrentes da queima da lavoura.

A prática da queima dos canaviais antes da colheita além de contribuir para o efeito estufa liberando gás carbônico, introduz partículas de fuligem na atmosfera, assim como inúmeros compostos potencialmente tóxicos, entre eles os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs). Esta fuligem, que permanece por um longo período de tempo no ambiente em suspensão no ar é considerada uma das causas da alta incidência de doenças respiratórias no Brasi1.

Os HPAs, substâncias potencialmente carcinogênicas e mutagênicas são constituídos por átomos de carbono e hidrogênio, contendo dois ou mais anéis aromáticos fundidos

Para evitar a queimada dos canaviais, o governo do Estado de São Paulo regu1amentou a colheita da cana estabelecendo prazo de até 30 anos para o fim das queimadas no Estado. Nas áreas mecanizáveis, a queima vem sendo eliminada desde 2002 (20% da queima eliminada), e a partir do 5° ano (2006) em 30%, sendo que a eliminação deverá ocorrer gradativamente a cada cinco anos, em 50%, 80% e 100%, onde espera-se que o fim das queimadas se dê em 2021. Para as áreas não mecanizáveis com nível de inclinação do solo superior a 12% (consideradas áreas de difícil mecanização), a eliminação terá um prazo maior iniciando em 2011 (10% da queima eliminada), porém com percentuais de áreas queimadas em relação às cortadas mais brandas resultando no fim das queimadas em 2031.

No entanto, de acordo com o protocolo assinado entre a União da Indústria Canavieira (Unica), o governo de São Paulo e as secretarias estaduais de Meio Ambiente e de Agricultura e Abastecimento, percentuais mais rigorosos para o fim das queimadas serão adotados. Este prazo deverá ser reduzido para o ano de 2014, para as áreas onde já há mecanização. Para as regiões com nível de inclinação de 12% a data limite será estendida até o ano de 2017.

Procurando avaliar o efeito da queima da cana sobre a qualidade da cachaça, foi efetuado no Laboratório pa ra o Desenvolvimento da Química da Aguardente (LDQA), a análise de 15 HPAs (naftaleno, acenafteno, fluoreno, fenantreno, antraceno, fluoranteno, pireno, benzo antraceno, criseno, benzo flutuoramento,  benzo fluorateno,  benzo pireno,  em 131 amostras de cachaça. Destas, 26 foram produzidas com cana queimada e 105 com cana não queimada. As cachaças foram coletadas em diferentes cidades do interior do Estado de São Paulo, como parte do Projeto Políticas Públicas Fapesp (2001/12934-0). As informações sobre a maneira pela qual a cana foi colhida (crua ou queimada) foram fornecidas pelos produtores no momento da coleta das amostras.

As amostras de cachaça foram analisadas utilizando a técnica de cromatografia líquida de alta eficiência (high performance liquid chromatography, HPLC), após serem previamente concentradas por extração em fase sólida (solid phase extraction, SPE).

De um modo geral, a mediana, soma dos teores médios, valor mínimo e máximo dos HPAs analisados nas amostras produzidas com cana-de-açúcar queimada, foram superiores aos observados para as amostras produzidas com cana não queimada. As medianas variaram de 2,99 10² µ L¹ (benzo(K)fluoranteno) a 6,19 µg L¹ (fenantreno) para as amostras produzidas com cana queimada, e de 7,40 10 (benzo a 4,21 101 ig E (fenantreno) para as amostras produzidas com não queimada.

Observou-se também que a soma dos teores médios dos HPAs nas amostras de cachaça produzidas com cana queimada , e de 7,40 10 ³ (benzo(k)fluoranteno) a 4,21 101 µ L¹ para as amostras produzidas com não queimada.

Observou-se também que a soma dos teores médios dos HPAs nas amostras de cachaça produzidas com cana queimada (21,1 µ L¹) foi cerca de dez vezes maior que o observado nas amostras de cachaça produzidas com cana não queimadaa (1,91 µ L¹) ². Estes teores médios variam de 7,74 10³ µg L¹ de fenantreno (valor mínimo) a 33,7 µg L¹ de benzo(k)fluoranteno (valor máximo) para os dois tipos de destilados, respectivamente.

De acordo com os valores apresentados, supõe-se que a queima da cana-de-açúcar utilizada na produção da cachaça seja uma das principais fontes de contaminação da cachaça por HPAs.

Os resultados analíticos decorrentes das análises químicas dos HPAs foram correlacionados com as informações prestadas pelos produtores de cachaça sobre o tipo de colheita na qual a cana-de-açúcar foi submetida por meio de tratamentos matemáticos e estatísticos, utilizando-se da análise multivariada (quimiometria).

Dentre as diversas técnicas quimiometricas existentes, a Análise de Fatores (Factor Analysis, FA) e a Análise Discriminante Linear (Linear Discriminant Analysis, LDA) foram utilizadas para verificar a possibilidade de distinção entre as amostras de cachaça produzidas com cana queimada e não queimada.

A FA é um procedimento estatístico utilizado para descobrir relações entre variáveis de um conjunto de dados. Assim, a Figura 2 apresenta o gráfico de pontuação (score) das amostras obtido da análise de fatores (FA), utilizando-se os resultados obtidos para 13 hidrocarbonetos (naftaleno, acenafteno, fluoreno, fenantreno, antraceno, fluoranteno, pireno, benzo(a)antraceno, criseno, benzo(K)fluotanteno, benzo(a)pireno, dibenzo(a,h) antraceno e benzo (g,h,i) perileno) como discriminantes químicos.

Observa-se a presença de dois grupos distintos de amostras de cachaça, um representando as amostras de cachaça produzidas com cana-de-açúcar não queimada (.), e outro representando as amostras de cachaça produzidas com cana-de-açúcar queimada (O). Nota-se que as amostras de cachaça produzidas com cana-de-açúcar não queimada encontram-se mais agrupadas que as amostras produzidas com cana queimada, caracterizando uma quantidade menor de HPAs para este tipo de destilado (produzido com cana não queimada).

Dentre os HPAs que propiciaram o agrupamento das amostras de cachaça produzidas com cana-de-açúcar não queimada, os analitos que mais contribuíram foram acenafteno e fluoreno. Para as amostras de cachaça produzidas com cana-de-açúcar queimada, benzo e criseno foram os analitos que mais contribuíram para este agrupamento.

A análise discriminante linear (LDA) é uma técnica extremamente poderosa para estudos de discriminação entre um número pequeno de grupos. Em função disto foi criado um modelo aplicando a LDA em 103 amostras de cachaça (84 produzidas com cana não queimada e 19 com cana queimada). Todas as amostras de cachaça produzidas com cana não queimada foram identificadas corretamente pelo modelo quimiométrico. Com relação às amostras produzidas com cana queimada, apenas 2 amostras foram classificadas incorretamente pelo modelo, gerando uma porcentagem de acerto total de 98,1%.

O modelo LDA foi então testado cegamente em 28 amostras de cachaça. Destas 7 amostras foram produzidas com cana-de-açúcar queimada e 21 produzidas com cana-de-açúcar não queimada. Os resultados obtidos indicaram que o modelo LDA apresentou 100% de acerto, utilizando os seguintes descritores químicos: naftaleno, acenafteno, fluoreno, fenantreno, antraceno, fluoranteno, pireno, benzo(a)antraceno, benzo(b)fluoranteno  e benzo (g,h,o) perileno.

Em função dos resultados apresentados, fica evidente que a queima dos canaviais, antes da colheita da cana-de-açúcar utilizada na produção da cachaça, conduz à contaminação deste destilado por HPAs. Estes resultados demonstraram também que a análise dos HPAs juntamente com o tratamento quimiométrico (FA e LDA), são apropriados para a discriminação entre cachaça produzidas com cana-de-açúcar queimada das amostras de cachaça produzidas com cana não queimada. O mesmo pode ser aplicado ao açúcar e ao álcool combustível.

O presente trabalho é parte de um pedido de pa tente de invenção brasileiro junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI/SP) número 018070071325.

Agradecimentos

CNPq, Fapesp e Capes