Em uma festa de casamento encontro um antigo conhecido de infância. Soube que estava à frente da velha fábrica de tecidos da cidade onde passei a minha juventude, perdida em um socavão nas Minas Gerais. Por falta de assunto, perguntei-lhe como andava a fábrica. Esperava um típico choramingo de mineiro. Ouviria o tradicional "é, a gente veve, como Deus é servido". Mas qual não é minha surpresa quando responde firme: Estamos com Qualidade Total implantada.
Qualidade Total? O sistema que deu aos produtos japoneses liderança e confiabilidade? O sistema inventado pelos americanos, mas que só os japoneses têm a disciplina e a persistência necessárias para usar? O sistema inchado de computadores e de estatística inferencial? O sistema onde a empresa fecha o departamento de controle de qualidade e todos passam a ser responsáveis por ela? Onde os operários decidem sem perguntar ao patrão?
Lá na fábrica do neto do falecido seu Nico? Só vendo.
Em uma tarde livre, tive a oportunidade de pôr à prova a sua gabolice. Encontro a mesma a fábrica da minha infância, com seu prédio caiado de branco, indicando na fachada a data de sua fundação: 1892. Continua a fábrica austera e espartana que conheci. O falecido seu Nico, dono da venda ao lado da igreja do padre Adelmo, tinha fama de pão-duro, plenamente herdada pelo neto que se gaba de sua sovinice para administrar a fábrica. Ora, Qualidade Total não rima com aquelas máquinas velhas e gerência de dono de armazém de secos e molhados.
Mas, apesar de velha, a fábrica estava imaculadamente limpa. Exagero mesmo, coisa de japonês. Há concursos internos de eficiência e um enorme troféu estava orgulhosamente exibido na Manutenção Mecânica, bem atrás de um torno pintadinho de novo, mas contemporâneo da Primeira Guerra.
A tecelagem é arcaica, mas funciona no limite de sua capacidade. A fiação é quase toda moderna. O resto é comum, modesto, convencional e limpo. No todo, não parece mais do que uma fábrica de tecidos bem varrida.
Os escritórios chocariam os nossos capitães de indústria tupiniquins, sempre preocupados com as liturgias da modernidade (os vidros fume, o aço escovado, o ar condicionado fortíssimo e as mordomias). As mesas são velhas e as cadeiras, duras. Não há serviçais para o cafezinho, telefonista ou secretárias. Nada dos rituais tão ao agrado dos nossos executivos.
Mas os muitos computadores cospem relatórios diários de produtividade, qualidade, perdas, aproveitamento de matérias-primas e outros indicadores. Os treinamentos se multiplicam. Os gurus da Fundação Cristiano Otoni freqüentam a fábrica para assegurar respeito aos princípios sagrados da QT. Os operários cuidam diretamente da qualidade do produto em todas as suas fases e reclamam se o chefe comprar um algodão que possa comprometer as metas de produção que eles mesmos estabeleceram.
Nada se perde. O sistema de controle de efluentes, atualmente em instalação, produzirá resíduos sólidos que engordarão os porcos do gerente e fertilizarão os seus pés de café.
Os números são espetaculares. A produtividade aumentou 40% em menos de dois anos, fruto sobretudo da redução dos defeitos e das perdas, bem como do desvelo de todos com a qualidade do produto. Em retribuição, os operários são aumentados a cada salto da produtividade. A rotatividade da mão-de-obra caiu de 18% para pouco mais de 2% e a meta próxima é de 1% ao mês. O número de operários foi bastante reduzido, mas os recordes de produção são superados a cada mês.
Em meio à quebradeira generalizada da indústria têxtil e concorrendo com os tecidos chineses, a fábrica sobrevive e está prestes a jogar fora os teares velhos e substituí-los por novos. Milagre do pão-durismo mineiro? Ou será da Qualidade Total?
Pelo que pude apurar, as duas coisas se somam. As novas técnicas gerenciais japonesas foram originalmente desenvolvidas para aproveitar o potencial oferecido pela automação. Em outras palavras, não adianta máquina nova com organização velha, do tipo exército. Mas, aos poucos, descobriu-se que é possível adotar em fábricas convencionais a mesma organização concebida para tirar partido da automação — ou seja, organização nova com máquina velha até que dá samba. É organização de alta tecnologia com máquinas de baixa tecnologia. Naturalmente, se fosse tão fácil, todo mundo já teria feito. O desafio na implantação é enorme, mas os resultados podem ser excelentes.
A principal dificuldade talvez seja mudar as relações entre gerência e empregados. Como dizia um líder paulista da CUT, "pois é, estes empresários são engraçados, fazem um cursinho de Qualidade Total, chegam segunda-feira na fábrica, batem no ombro do primeiro operário que encontram e exclamam: agora somos amigos! Mas não é assim não, se quer ser amigo tem que provar".
Mas quem vence estas barreiras terá feito um grande negócio. Gasta mais pagando os operários, custam mais os controles e os computadores. Mas gasta muito menos em matérias-primas desperdiçadas, em produtos devolvidos ou mercados perdidos por consumidores mal satisfeitos. E, de quebra, lá nas Minas Gerais, a sovinice do dono economiza alguns reais aqui e acolá. A fábrica do neto do falecido seu Nico tem Qualidade Total implantada e vai muito bem, obrigado.
* Chefe da Divisão de Programas Sociais do BID, mestre em economia por Yale e PhD pela Vanderbilt University.
Notícia
Jornal do Brasil