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Justificando

A peste para além d’A Peste e os riscos do fascismo

Publicado em 07 abril 2020

Por João Guilherme A. de Farias

João Guilherme A. de Farias

 

Terça-feira, 7 de abril de 2020

Imagem: Antonio Cruz / Agência Brasil – Montagem: Gabriel Pedroza / Justificando

Por João Guilherme A. de Farias

Nas últimas semanas, o livro A Peste, de Albert Camus, escrito há 70 anos, passou a figurar entre os 10 títulos mais lidos da Itália. Na França, sua comercialização experimenta um aumento exponencial, com crescimento equivalente a 300% em comparação com o mesmo período do ano passado [1].

Se, por um lado, pode-se afirmar que é o aspecto alegórico e figurativo da obra que comanda o seu ressurgimento, obviamente em razão da pandemia do covid-19 [2], por outro, e aqui é precisamente onde reside a potencialidade da recente disseminação do romance, isso nos permite reforçar aquele que seria o objeto de real preocupação do livro: a permanência do fascismo, que não morre nem desaparece nunca.

Aparentemente, o livro de Camus trata das mazelas sociais e morais decorrentes de um surto epidemiológico que atinge a cidade de Orão, litoral da Argélia, e que nos são narradas por meio dos relatos de um médico, Bernard Rieux, testemunha ocular daqueles episódios. Diante de cada página, somos confrontados com questões muito contemporâneas, como o isolamento social, o fechamento de fronteiras, a interrupção de setores da economia, o desabastecimento de alimentos, etc.

Ainda nesse sentido figurativo, uma das passagens mais “proféticas” do livro, cotejando-a com o momento atual, diz respeito à citação de uma “Lenda Dourada” segundo a qual a região da Lombardia, na Itália, teria sido devastada por uma peste “tão violenta que os vivos mal chegavam para enterrar os mortos”. E, infelizmente, o que estamos vendo ao longo das últimas semanas é que precisamente a Lombardia, onde está localizada a cidade de Milão, concentra na Itália o maior número de casos do covid-19 e vem experimentando um cenário de incomparável calamidade.

Também no aspecto socioeconômico a pandemia de 2020 e a peste da década de 1940 desenhada por Camus coincidem. Acaba de ser publicado o livro “Coronavírus e a Luta de Classes” (Editora Terra Sem Amos), no qual um dos artigos, de autoria de Mike Davis, traz a seguinte constatação: “atualmente, 45% da força de trabalho [dos Estados Unidos] não tem esse direito [licença remunerada] e é praticamente obrigada a transmitir a infecção ou ficar com o prato vazio”. Do mesmo modo, em Orão “as famílias pobres encontravam-se, assim, numa situação muito difícil, enquanto às ricas não faltava praticamente nada”. Nunca é demais lembrar que “a história de toda sociedade até hoje é a história de luta de classes”, de Orão da década de 1940 a qualquer outra cidade capitalista da atualidade.

Todas essas semelhanças, é verdade, reforçam a face aparente da obra, de tal forma que não haveria espaço nesse artigo para relatar as inúmeras relações que o livro de Camus nos permite estabelecer com a realidade atual e os problemas causados pelo covid-19. Por isso é tão necessário registrar o convite para que o(a) leitor(a) se aventure, por seus próprios meios, pelas páginas de A Peste. Mas tratemos do que é ainda mais pertinente: da peste que ultrapassa os limites biológicos, ou seja, da face real e ao mesmo tempo oculta do livro. A propósito, algo já foi dito a esse respeito no Justificando há alguns dias, no artigo “O vírus e a peste”.

Pois bem, a alegoria montada por Camus é fascinante. Ainda que recusasse a violência revolucionária, quiçá por ser incapaz de aceitar, como disse Trotsky, que a “revolução é produto da sociedade dividida em classes”, os problemas morais e filosóficos expostos em A Peste escancaram, de certo modo, as crueldades da própria exploração econômica, de um lado, e do perigo do fascismo, de outro. É neste ponto que reside, para nós, o seu caráter mais atual.

Contudo, demos o azar, se assim podemos definir, de assistir ao ressurgimento de A Peste precisamente em meio ao surto do covid-19, o que nos permite dizer que foi justamente o sentido alegórico e figurativo da obra que passou a despertar o interesse de leitores ao redor do globo.

Bem entendido, o que estamos a falar é que A Peste poderia ter ressurgido com destaque nas prateleiras e com o mesmo vigor, por exemplo, durante a recente ascensão do partido nacionalista Aurora Dourada, na Grécia, do movimento racial de defesa da supremacia branca Alt-right (direita alternativa), nos Estados Unidos, bem como do movimento de massas que, além da disputa burguesa intraclasse, contribuiu para a eleição de Bolsonaro.

Mas, ao contrário, foi precisamente o covid-19 que colocou A Peste no centro das atenções. De qualquer modo, é ótimo que o livro esteja em voga novamente, já que nos permite avançar para além da narrativa aparente. Afinal, inicia-se a leitura do livro com a curiosidade de encontrar nele elementos literários que possam dar conta de expressar, pela narrativa de um romance, a dura realidade causada pela epidemia do covid-19, e, ao término, depare-se com o alerta de que o fascismo está sempre à espreita, esperando uma oportunidade para fazer grandes estragos na humanidade.

Escrito em 1947, poucos anos após o fim da ocupação da França pelo exército nazista e numa atmosfera em que países europeus eram dominados pelo fascismo, Camus, nascido na Argélia quando esta era ainda colônia francesa, frequentou círculos intelectuais da esquerda, permanecendo próximo de Sartre até a publicação de “O Homem Revoltado” (1951) [3].

Em decorrência de tais elementos, é pouco provável que Camus estivesse tratando apenas de um surto epidemiológico, por exemplo, à luz do aprendizado imposto ao mundo pela gripe espanhola de 1918. A Peste é qualquer coisa, mas de modo algum um romance desinteressado.

Os corpos empilhados e queimados na cidade de Orão, alvos da peste, caracterizada, assim como o covid-19, por crises respiratórias graves, seriam apenas corpos acometidos por uma epidemia ou o relato alegórico do genocídio cometido contra o povo judeu? Os ratos seriam, assim, pateticamente, apenas esses seres repugnantes ou uma forma justa de tratamento da ideologia nazifascista? A peste seria, por sua vez, apenas um surto epidemiológico ou a decadência que afeta as relações humanas?

Nesse sentido, são inúmeros os exemplos contidos no livro de Camus, tais como a denúncia da exploração do trabalho que destrói as relações humanas [4], da moral falsa e contraditória e do vazio por trás do conceito de justiça [5], da destruição dos vínculos de solidariedade [6], da alienação causada pela crença em deus [7], que é também uma forma de desintegração e enfraquecimento dos laços humanos, e do exílio [8], problemas que certamente ainda desagradam os defensores de uma ordem opressora, rígida e antiquada, guiada por deus, pela família e propriedade privada.

Nessa perspectiva é que vale lembrar que há 56 anos tinha início um dos períodos mais brutais da história brasileira recente: a ditadura civil-militar instaurada com o Golpe de 1964. Essa peste que insiste em nos assombrar. Alguns intelectuais chamam atenção para a conjuntura brasileira atual e a tendência de ruptura política, ou pela classe trabalhadora, ou pela burguesia financeira e varejista, neste caso representadas por Bolsonaro, sustentado por grupos neopentecostais e militares [9]. Só o jogo da correlação de força das classes envolvidas poderá definir o caminho que será tomado.

Em outubro de 2018, após o resultado das eleições presidenciais, parafraseando Camus, poderíamos dizer que o sentimento de milhões de brasileiros se resumia à seguinte constatação: “os flagelos, com efeito, são uma coisa comum, mas acredita-se dificilmente neles quando nos caem sobre a cabeça. Houve no mundo tantas pestes como guerras. E, contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas”.

Em 31 de março de 2020, não apenas o vice-presidente da república publicou nota de apoio ao Golpe de 1964 [10], como o próprio Ministério da Defesa teve a ousadia de retratar a ditadura como “um marco para a democracia brasileira” por meio de Nota Oficial [11]. Por essas razões, não tanto pelo covid-19, é que se torna interessante a leitura de A Peste, de Camus. Afinal, como diz ele: “o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis, na roupa, espera pacientemente nos quartos, nas caves, nas malas, nos lenços e na papelada [até o dia em que], para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz”…

E para que não sejamos pegos desprevenidos, recordemo-nos do que disse Wanderley Guilherme num texto de 1962 sobre o golpe que, acertadamente, julgava estar em curso: “a tentativa de golpe não resulta da paranoia de alguns grupos de indivíduos, civis ou militares, mas da situação social brasileira, no momento presente, que conduz a minoria privilegiada do País a esse tipo de comportamento político” [12]. Enquanto permanecerem irresolutas nossas contradições sociais, viveremos sob o risco de ressurgimento da peste do fascismo.

João Guilherme A. de Farias é Mestrando em Ciências Sociais pela UNIFESP (bolsista FAPESP). Pós-graduando em Direito do Trabalho pela EPD. Bacharel em Direito pela PUC-SP.

Notas:

[1] Dados publicados pelo jornal The Guardian. Disponível em: https://www.theguardian.com/books/2020/mar/05/publishers-report-sales-boom-in-novels-about-fictional-epidemics-camus-the-plague-dean-koontz Acesso em: março de 2020.

[2] Infelizmente, alguns textos recém publicados reforçam essa ideia, estabelecendo tão somente a relação do livro com a covid-19, como é o caso, por exemplo, do texto de José Pestana. Disponível em: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-romance-a-peste-de-albert-camus-e-o-coronavirus,70003232627 Acesso em: março de 2020.

[3] Sobre o rompimento, conferir artigo “Sartre rompeu com Camus ao defender a violência revolucionária da esquerda” Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/09/1915799-sartre-rompeu-com-camus-ao-defender-a-violencia-revolucionaria-da-esquerda.shtml Acesso em: março de 2020.

[4] “[…] a gente casa-se, ama ainda um pouco, trabalha. Trabalha tanto que se esquece de amar” (p. 97).

[5] “A partir desse instante, não puder olhar para o Guia Chaix sem uma repugnância abominável e passei a interessar-me com horror pela justiça, pelas condenações à morte, pelas execuções […]”. (p. 271).

[6] “[…] o bispo, tendo feito tudo o que devia fazer, julgando que já não havia remédio, se encerrou com víveres na sua casa, que mandou murar”. (p. 248).

[7] “visto que a ordem do mundo é regulada pela morte, talvez valha mais para Deus que não acreditemos n’Ele e que lutemos com todas as nossas forças contra a morte, sem erguer os olhos para o Céu, onde ele se cala”. (p. 144).

[8] “Alguns entre nós, contudo, obstinava-se em escrever e imaginavam sem tréguas, para corresponder com o exterior, estratagemas que acabavam sempre por se revelar ilusórios”. (p. 83).

[9] Me refiro a um artigo recente de Milton Pinheiro: “Quem fará a ruptura no Brasil”. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/26/quem-fara-a-ruptura-no-brasil/. Acesso em: março de 2020.

[10] “Há 56 anos, as FA [Forças Armadas] intervieram na política nacional para enfrentar a desordem, subversão e corrupção que abalavam as instituições e assustavam a população. Com a eleição do General Castello Branco, iniciaram-se as reformas que desenvolveram o Brasil. #31deMarçopertenceàHistória”. Publicado no Twitter de Hamilton Mourão.

[11] Documento intitulado: “Ordem do Dia Alusiva ao 31 de Março de 1964”. Acesso em: março de 2020. Disponível em: https://www.defesa.gov.br/noticias/67417-ordem-do-dia-alusiva-ao-31-de-marco

[12] “Quem dará o golpe no Brasil?” Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/quem.pdf. Acesso em março de 2020.