No dia 8 de maio, em reunião inédita, oito ex-ministros do Meio Ambiente emitiram um comunicado alertando para as políticas que vêm sendo adotadas no ministério sob a gestão de Ricardo Salles. Juntos, Rubens Ricupero, Gustavo Krause, José Sarney Filho, José Carlos Carvalho, Marina Silva, Carlos Minc, Izabella Teixeira e Edson Duarte somam mais de 20 anos de gerência da pasta, do governo de Itamar Franco até o de Michel Temer.
Eles se debruçam sobre medidas que têm sido questionadas por cientistas e organizações da sociedade civil desde que o novo governo tomou posse. Apontam, entre outras coisas, para o “risco real do aumento descontrolado do desmatamento na Amazônia”, retrocessos na redução de gases de efeito estufa e nas ações de adaptação às mudanças climáticas e para a perspectiva de afrouxamento do licenciamento ambiental.
A agenda liberal adotada por Ricardo Salles tem gerado barulho no meio ambiental. Em entrevista a Alexandre Borges, da Gazeta do Povo, Salles explicou que “fechou a torneira” do ministério, que será mais criterioso na distribuição de recursos para projetos e que implantará políticas públicas voltadas para desenvolvimento. “Vamos adotar uma agenda de valores liberais, que respeita os setores produtivos, a livre iniciativa, que coloca as questões juridicamente de forma estável para permitir que haja desenvolvimento, respeitando o meio ambiente”, afirmou.
Para o grupo de ex-ministros que se manifestaram contra, porém, a política de Salles ameaça o desenvolvimento. “A consolidação e o fortalecimento da governança ambiental e climática, ponderamos, é condição essencial para a inserção internacional do Brasil e para impulsionar o desenvolvimento do país no século 21”, afirmam. Para eles, as iniciativas em curso vão na direção oposta a isso, “comprometendo a imagem e a credibilidade internacional do país”.
Mudanças internas
O documento chama atenção, ainda, para mudanças na estrutura do ministério, o enfraquecimento de organismos de proteção e fiscalizadores - como Fundação Nacional do Índio (Funai), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) - e para a previsão da perda de protagonismo do país em discussões globais. “Não há desenvolvimento sem a proteção do meio ambiente. E isso se faz com quadros regulatórios robustos e eficientes, com gestão pública de excelência, com a participação da sociedade e com inserção internacional. Reafirmamos que o Brasil não pode desembarcar do mundo em pleno século 21”, escrevem.
Salles respondeu ao comunicado dos ex-ministros com uma carta pública, em que justifica as medidas criticadas como ajustes de más gestões prévias e mudança de foco das prioridades do Ministério do Meio Ambiente (MMA). “O atual governo não rechaçou, nem desconstruiu, nenhum compromisso previamente assumido e que tenha tangibilidade, vantagem e concretude para a sociedade brasileira. Mais do que isso, criou e vem se dedicando a uma inédita agenda de qualidade ambiental urbana, até então totalmente negligenciada”, afirma o ministro.
Metas indefinidas
Dentro do contingenciamento de verbas adotado pelo Planalto, o orçamento do MMA passou de R$ 821 milhões para R$ 634 milhões, com um bloqueio de 23%. A Agenda Nacional de Qualidade Ambiental Urbana, foco principal do ministério, ainda não tem metas e orçamento definido. As ações de apoio à implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, por exemplo, tiveram 83% de sua verba (R$ 6,4 milhões) congelada pelo MMA. Os dados são da Secretaria de Orçamento Federal e foram compilados pela Associação Contas Abertas.
O secretário-executivo do Observatório do Clima (rede formada por dezenas de entidades da sociedade civil brasileira que discute a crise climática no contexto nacional), Carlos Rittl aponta dois eventos recentes que despertam a preocupação com a agenda urbana. Nos últimos dois meses, além de não ter assinado um acordo global para redução do volume de lixo plástico, o Brasil teve a oportunidade aprovar uma resolução que regulasse as emissões de poluentes em motocicletas. “Através da intervenção do MMA no Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), o resultado foi uma resolução extremamente permissiva. Durante os próximos dez anos a gente ainda vai ter motocicletas poluindo muito as nossas cidades”, relata. A poluição do ar é o tema deste ano do Dia Mundial do Meio Ambiente, celebrado em 5 de junho e promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU). Ela é considerada é um fator de risco crítico para doenças crônicas não transmissíveis, como doenças cardíacas e do sistema respiratório e acidentes vasculares cerebrais.
Menos poder de fiscalização
As vozes dos ex-ministros se somam a outras que já se mostravam preocupadas com os possíveis rumos da gestão ambiental no governo de Jair Bolsonaro (PSL). Como candidato, ele chegou a anunciar que o Ministério do Meio Ambiente seria extinto, mas voltou atrás. “O que existe é uma submissão do MMA à agricultura e outros setores e o esvaziamento do ministério”, critica o coordenador de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil, Marcio Astrini.
Rittl concorda. “A nossa expectativa é de que [Bolsonaro] não cumprisse as suas promessas com relação à agenda socioambiental. Mas o ministro [Salles] está fazendo exatamente isso: reduzindo a ação do Estado para proteção e fiscalização ambiental”. As verbas de implementação da Política Nacional sobre Mudança do Clima foram das mais afetadas pelo contingenciamento: 96% do total foi bloqueado, valor que chega a R$ 11,2 milhões.
Entre os setores que sofreram o bloqueio de verbas no MMA estão, ainda, o licenciamento ambiental federal (43%), a prevenção e controle de incêndios florestais nas Áreas Federais Prioritárias (39%), apoio à criação e gestão das Unidades de Conservação Federais (26%), controle e fiscalização ambiental (24%) e fiscalização ambiental e prevenção e combate de incêndios florestais (20%).
Fontes com circulação no MMA também afirmam que, sob a atual gestão, há uma tentativa de esvaziar o ministério. Além das transferências de competências para outras pastas (como o Serviço Florestal Brasileiro, que passou para o Ministério da Agricultura com a reforma administrativa), a direção de diversas secretarias vem sendo aglutinada, o que atrapalharia o fluxo de gestão de processos e projetos e congela o trabalho.
Para os especialistas consultados, quando são somadas ações que buscam alterar procedimentos de fiscalização de desmatamento e extração ilegal de madeira às críticas do próprio ministro à fiscalização ambiental, o trabalho dos agentes ambientais, que já é arriscado, fica ainda mais comprometido.
“Você ter o comandante da pasta criticando as ações de agentes do Estado que colocam a sua vida em risco tem um efeito muito negativo”, ressalta Astrini. “E a cada dia vemos novas notícias de críticas constantes à atuação de combate ao crime ambiental, de perseguição de fiscais, de diminuição da capacidade de operação em campo e de criação de novas instâncias para gerenciar anistia de multas.”
Parte do pacote de medidas anunciado pelo governo federal quando completaram- -se 100 dias de mandato, o decreto nº 9.760 cria “núcleos de conciliação” para apurar a aplicação de multas ambientais. A possibilidade de resolver essas questões extrajudicialmente não é, em si, um problema. As dificuldades começam quando se analisa o que isso significa na realidade ambiental brasileira.
O professor de Gestão Ambiental e Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Raoni Rajão explica que a tendência é de que ainda menos seja de fato recolhido. “Todo auto de infração terá que ter uma audiência de conciliação presencial e, enquanto ela não acontece, o prazo de defesa fica suspenso [por tempo indeterminado]. Se o prazo fica suspenso, o produtor não precisa pagar a multa. Então ele senta e espera. As pessoas vão continuar cometendo crime ambiental, as multas vão se acumulando e ninguém vai precisar pagar nada.”
“É importante dizer que, nos últimos anos, o Ibama melhorou muito a efetividade dele no tratamento dos autos de infração - hoje a maioria deles é paga. [O problema] é que esses são os de valor pequeno. Os de valor grande, como o de Brumadinho, da Vale, são judicializados e não são pagos. Então o percentual de valores pagos é muito pequeno, mas não é por culpa do processo administrativo: é pela dinâmica de que quem está devendo muito prefere pagar o advogado ao invés de pagar a multa”, exemplifica o professor.
“Se o governo, que é muito focado, corretamente, no combate à corrupção e aplicação das leis, adotasse os mesmos princípios para a questão florestal - vamos fazer uma Lava Jato do desmatamento e da grilagem de terras? - a gente poderia diminuir a criminalidade e, ao mesmo tempo, proteger o meio ambiente”, analisa, apontando a contradição no discurso do governo federal. “O presidente tem que decidir se quer se transformar num herói da força da lei também no meio ambiente ou se quer implementar a legislação de maneira seletiva: sendo duro com alguns aspectos da lei e fechando o olho para outros.”
Ameaças à política externa
No final de abril mais de 600 cientistas brasileiros e estrangeiros assinaram uma carta publicada na revista “Science” criticando a postura que o Brasil vem adotando em relação ao desmatamento e aos povos tradicionais. O texto pede que a União Europeia condicione o comércio com o país à proteção ambiental. O bloco é, hoje, o segundo maior parceiro comercial brasileiro, atrás apenas da China.
Laura Kehoe, pesquisadora da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e uma das responsáveis pela carta, conta que a resposta ao documento tem sido positiva e que o grupo espera, agora, que a União Europeia se pronuncie oficialmente sobre o tema. “Atualmente, nós importamos um campo de futebol de desmatamento por hora do Brasil”, afirma.
A cientista, que pesquisa a cadeia produtiva do agronegócio e o desmatamento na América Latina, acredita que há fortes motivos econômicos para parar a perda dos habitats naturais brasileiros. Ela explica que, como já existem períodos prolongados de seca na Amazônia, o desmatamento contínuo oferece o risco de que grandes partes da floresta acabem virando uma savana. Como o sistema climático nacional e de outras partes do mundo depende da umidade gerada pela floresta amazônica, isso resultaria em secas generalizadas e perda de colheitas, colocando em risco a produção agrícola, a segurança alimentar e meios de subsistência locais.
“Hoje, apenas uma minoria de usuários da terra está diretamente por trás do desmatamento que está desestabilizando as chuvas das quais a agricultura depende”, aponta. “Ganhos econômicos comparáveis poderiam ser obtidos expandindo a agricultura em terras degradadas e melhorando a produtividade produtividade das terras agrícolas atuais. Pesquisas científicas realizadas no Brasil mostraram que essas técnicas poderiam atender à demanda esperada por pelo menos mais duas décadas e simultaneamente fortalecer a economia, evitando ao mesmo tempo o desmatamento e a degradação associada do meio ambiente. Isso tudo prova um ponto crucial: o desmatamento zero não prejudica o agronegócio ou a economia, mas sim permite sua longevidade.”
O professor Pedro Dias, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP), tem esperanças que as pressões comerciais sejam o suficiente para que iniciativas nocivas ao meio ambiente por parte do governo sejam revistas. “O mercado vai dar o recado. Hoje nós estamos numa época em que a questão da pegada de carbono conta no mercado internacional, principalmente no setor agrícola”, pontua. “Eu estou ansiosamente esperando que o ministro perceba as opções existentes hoje em dia apontam numa direção completamente diferente. Espero que haja bom senso e que escutem a ciência, não a ideologia.”
Um trabalho de várias décadas
Há quem remonte o início do movimento ambientalista global a uma única foto - Earthrise, a primeira fotografia colorida do nosso planeta visto da perspectiva lunar, datada de 1968. A imagem é simbólica por mostrar justamente o que torna o nosso planeta único, vivo: o azul profundo dos oceanos e o verde das florestas é a explosão de cores que nos diferencia do restante do espaço, opaco e sem vida.
O Brasil, no entanto, já tinha políticas voltadas à proteção do meio ambiente há muito tempo. Mais precisamente, desde os tempos coloniais. Antes mesmo da Proclamação da República, nós já tínhamos leis visando a conservação das florestas, águas, regulamentando o uso do solo e estabelecendo sanções a atividades predatórias. Os fundamentos do que é hoje a nossa legislação ambiental vieram mais tarde. Foi durante a ditadura militar que diversos mecanismos foram criados. “Um exemplo claro disso é a presença maior do poder público na proteção das florestas, que foi tomada como pauta prioritária pelo presidente Castelo Branco”, conta Rajão.
O Código Florestal de 1965, que vigorou até 2012, foi sancionado durante o governo de Castelo Branco. “O [ministro da Agricultura] Hugo Leme escreve, em 1965, que aquela lei era tão importante que, se ela não fosse implementada, o Brasil ia virar um deserto. Hoje a gente trata [da proteção às florestas] falando em mudanças climáticas, porque a ciência já avançou. Mas a consciência e a primeira política pública sobre isso se estabeleceu ali”, relata.
Outro exemplo é o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que nasceu em 1981, sob a gestão Figueiredo, que cria a Política Nacional de Meio Ambiente (PNMA). “Na primeira normativa o Conama tinha 37% das cadeiras ocupadas por ONGs ambientalistas e do setor produtivo. Hoje são somente 28%. Por isso é errado dizer que houve uma ‘invasão’ das ONGs no conselho promovida pela esquerda”, diz o pesquisador.
“O que vem sendo muitas vezes questionado e colocado como sendo uma posição ideológica [dos governos recentes] são, na verdade, construções cuja pedra fundamental foi colocada ali durante o regime militar”, pondera. “O que está sendo proposto agora não é acabar com o legado do PT, mas com um debate que está acontecendo há mais de um século.”
A LEGISLAÇÃO AMBIENTAL BRASILEIRA
Desde os tempos de Brasil colônia existe preocupação com a proteção e manejo dos nossos recursos naturais. Confira uma linha do tempo da evolução da legislação ambiental brasileira:
1605 – Primeira lei de cunho ambiental no País, o Regimento do Pau-Brasil era voltado à proteção das florestas.
1797 – Em carta que alerta para a necessidade de preservação. Rios, nascentes e encostas passam a ser declarados propriedades da Coroa.
1799 – Regimento de Cortes de Madeiras estabelece regras rigorosas para a derrubada de árvores.
1850 – Primeira Lei de Terras do Brasil disciplina a ocupação do solo e estabelece sanções para atividades predatórias.
1911 – Criada a primeira reserva florestal do Brasil, no antigo Território do Acre.
1934 – São sancionados o Código Florestal, que impõe limites ao exercício do direito de propriedade, e o Código de Águas - embriões da atual legislação ambiental brasileira.
1965 – Nova versão do Código Florestal amplia políticas de proteção e conservação da flora e cria as áreas de preservação permanente.
1967 – Editados os Códigos de Caça, de Pesca e de Mineração e a Lei de Proteção à Fauna.
1975 – Início do controle da poluição provocada por atividades industriais, obrigando empresas a prevenir e corrigir os prejuízos da contaminação do meio ambiente.
1981 – Estabelecida a Política Nacional de Meio Ambiente.
1988 – Nova Constituição é a primeira a dedicar capítulo específico ao meio ambiente, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras.
1991 – Lei de Política Agrícola tem capítulo especialmente dedicado à proteção ambiental.
1998 – Publicada a Lei 9.605, que dispõe sobre crimes ambientais e prevê sanções penais e administrativas para condutas e atividades danosas ao meio ambiente.
2000 – Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação prevê mecanismos para defesa de ecossistemas naturais e preservação de seus recursos naturais.
2001 – Estatuto das Cidades dá às prefeituras mecanismos para que o desenvolvimento dos municípios não ocorra em detrimento do meio ambiente.
2007 – Criados o Instituto Chico Mendes (ICMBio), responsável pela gestão e fiscalização das Unidades de Conservação, e a Política Nacional de Saneamento Básico.
2010 – Política Nacional de Resíduos Sólidos estabelece instrumentos e diretrizes para a gestão ambientalmente correta dos resíduos.
2012 – Novo Código Ambiental revoga o Código Florestal de 1965, altera diretrizes da Política Nacional de Meio Ambiente e cria o Cadastro Ambiental Rural e os Programas de Regularização Ambiental