Embora tenha dedicado razoável espaço às informações contidas no Relatório sobre o Desenvolvimento Humano no mundo, divulgado no começo da semana passada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a comunicação brasileira quase toda -uma exceção foram as duas páginas assinadas por Maria Cristina Fernandes aqui na Gazeta Mercantil — parece não haver dado a ênfase devida às questões centrais do documento. Talvez por causa do enorme volume de informações. Mas o fato é que se trata de questões cruciais para o Brasil:
1. Embora seja fenômeno inquestionável, a chamada globalização não é uma panacéia universal: gera ganhadores e perdedores e está contribuindo para a concentração da renda em âmbito planetário; as 358 pessoas mais ricas do mundo têm patrimônio maior que a renda anual das pessoas que compõem 45% da população da Terra (2,5 bilhões de pessoas); se a comparação fosse com o patrimônio dos mais pobres, a diferença seria ainda maior, pois os mais carentes em geral não têm patrimônio.
2. Dos US$ 23 trilhões anuais do Produto Interno Bruto mundial, US$ 18 trilhões cabem aos países industrializados e só US$ 5 trilhões aos países em desenvolvimento, onde está 80% da população; nos últimos vinte anos, a renda dos 20% mais pobres da humanidade caiu de 2,3% do total para 1,4%; a renda dos 20% mais ricos subiu de 70 para 857o do total; mesmo tendo o PIB global crescido 40% entre 1970 e 1985, nesse período o número de pobres no mundo aumentou 17%; 1,6 bilhão de pessoas viram sua renda decrescer entre 1980 e 1993.
3. Se se mantiverem as tendências atuais, diz James Gustave Speth, do PNUD, "a disparidade econômica entre os países industrializados e os países em desenvolvimento passará do injusto para o desumano".
4. Mesmo com a expansão econômica das últimas décadas, a participação dos países mais pobres, com 20% da população mundial, no comercio exterior global, entre 1960 e 1990, caiu de 4% do total para menos de 1%; o fluxo de investimentos privados para os países em desenvolvimento, embora tenha passado de US$ 5 bilhões para US$ 173 bilhões entre 1970 e 1994,concentrou-se (75%) em apenas dez países do Leste asiático e América Latina.
5. Os países não têm mais autonomia absoluta sobre as políticas internas de juros e câmbio e sobre a política financeira em geral.
6. As políticas de estabilização econômica recomendadas pelos organismos internacionais para os países em desenvolvimento, centradas na redução do déficit público, "na maior parte das vezes equilibraram orçamentos desequilibrando a vida das pessoas", e excluíram mudanças como reforma agrária e redistribuição do poder político.
7. O desemprego vai-se transformando no problema mais dramático dos novos tempos, seja nos países industrializados, seja nos países em desenvolvimento; as políticas de investimento, isoladas, não têm resolvido a questão; são necessárias políticas ativas para reverter esse rumo; entre as que têm produzido melhores resultados estão as que incentivam os setores intensivos em mão-de-obra (e não em capital ou tecnologia), as que dão apoio ao setor informal e as que investem na pequena e na média empresa.
8. Crescimento econômico é condição necessária, mas não suficiente, para o desenvolvimento humano; não basta crescer economicamente, é preciso investir principalmente em educação e saúde, para que esse crescimento se traduza em desenvolvimento humano e seja sustentável - a experiência tem mostrado que, sem desenvolvimento humano, o crescimento econômico é insustentável; a principal explicação para o êxito dos países do Leste asiático está no forte e continuado investimento em educação e saúde, além de políticas ativas de geração de emprego.
9. É preciso dar mais atenção ao crescimento do consumo, inclusive dos recursos naturais, no mundo (e não apenas ao crescimento populacional), para que o crescimento econômico não seja insustentável, não comprometa as possibilidades das futuras gerações.
Também no caso do Brasil o relatório específico, divulgado há cerca de um mês, já apresentava alguns enfoques inquietantes, por demonstrar que o País tinha, no início desta década, um dos maiores graus de desigualdade no mundo, considerada a diferença de renda média entre os 10% mais ricos e os 40% mais pobres da população: quase trinta vezes, com tendência até ali para um agravamento (sem considerar os últimos três anos).
Ao lado da concentração da renda, apontou aquele relatório tendência à redução no emprego industrial brasileiro: tomando o ano de 1985 como índice 100, o emprego industrial caiu de 130 para menos de 85, entre 1980 e 1995. Essa tendência foi acompanhada pela de acomodar grande parte da mão-de-obra desempregada ou nova no setor terciário e pela queda na qualidade do emprego, evidenciada pela redução na percentagem da força de trabalho com carteira assinada, de quase 60% em 1990 para menos de 50% em 1995.
Uma terceira preocupação poderá estar no fato de a participação brasileira no comércio exterior haver baixado de 1,5% das exportações mundiais na metade da década de 80 para 1% (nível do início da década de 60) no início da década de 90. Além disso, o Brasil quase só apresentava vantagens competitivas em indústrias intensivas em recursos naturais com baixo grau de processamento ou processadas em plantas sujeitas a fortes rendimentos de escala - setores para os quais a demanda internacional mostra baixo dinamismo e tendência à imposição de barreiras. A capacidade brasileira de enfrentar - esses obstáculos seria baixa também em razão do porte reduzido de nossas empresas e do baixo investimento no exterior. Além do mais, não se revelou nenhuma vantagem competitiva das empresas brasileiras em produtos intensivos em tecnologia. E o sobreuso de recursos naturais também poderia representar riscos a prazo mais longo.
Felizmente, porém, o Brasil é um dos países que demonstraram considerável progresso nas últimas três décadas em termos de desenvolvimento humano (embora também distribuído desigualmente). Cresceu a expectativa de vida (refletindo avanços na área de saúde), cresceu a escolaridade, ampliaram-se os serviços de saneamento básico. É um conjunto de indicadores que pode permitir - se aliado ao crescimento econômico - um novo ciclo de progresso, com mais equidade social. Para isso contribuiriam ainda o novo perfil demográfico do País, mais favorável - e já comentado neste espaço -, as tendências do processo de urbanização, as capacidades empresarial e tecnológica já adquiridas e a dimensão do mercado interno.
Será decisivo, entretanto, que o País encontre - com políticas adequadas - um perfil melhor de distribuição da renda. Isso dependerá decisivamente das políticas de investimento público e de geração de empregos, "com a criação de incentivos específicos para determinados grupos, como jovens ou desempregados há muito tempo", para "segmentos não expostos, diretamente ou através da cadeia produtiva, à concorrência internacional", e para segmentos intensivos em mão-de-obra.
São recomendações talvez polêmicas, numa hora em que o discurso da competitividade tende a concentrar-se quase unicamente no chamado "custo Brasil", nesse contexto, pôs encargos sociais. Parece pouco.
Por isso, seria necessário, útil, produtivo, que os setores mais envolvidos nesta discussão - Congresso, Executivo, partidos políticos, sindicatos, universidades - organizassem uma discussão mais aprofundada e sem preconceitos em torno desses -feiras, para comparar nossa experiência com o que se está fazendo em outros países - e dando certo. O relatório do PNUD aponta muitos exemplos, caminhos, teses, proposições!!'
Será lamentável se continuarmos como o Fabrizio de Stendhal, perdido e isolado em suas cogitações internas, sem prestar atenção ao que acontece a seu redor, na batalha de Waterloo.
* Jornalista
Notícia
Gazeta Mercantil