Surpresa de ver comunidade LGBTI+ de verde e amarelo vem da mudança na forma como eles apresentam à sociedade sua pauta prioritária do momento
Análises acuradas como a feita pelo professor Marco Aurélio em um texto de 2018 são mesmo dignas de um pós-escrito como o publicado em junho de 2024. Em 2018, Marco questionava o apoio de Israel à Parada do Orgulho LGBTI+ de São Paulo e partilhava sua indignação com o caráter brutal das ações do Estado de Israel na Faixa de Gaza. Já naquela ocasião, explorando questões de economia política, ele apontava o absurdo óbvio dos “assassinatos de crianças queimadas”. O tom daquele texto antecipa a crescente indignação contra os flertes genocidas de Israel como no caso do bombardeio a uma escola de uma agência da ONU em Gaza no começo de junho de 2024. No pós-escrito publicado neste ano, Marco, agora acompanhado por Nana Soares, ancora suas reflexões em sentidos subjacentes aos atos, em cenas paradoxais, e riscos iminentes, e assim, perde de vista dilemas estruturantes e mudanças fundamentais que se apresentam na superfície. Não por acaso, uma certa dose de purismo saudosista ecoa em frases como “com financiamentos contaminados”.
Seria ingênuo ignorar os efeitos produzidos pelos financiadores sobre os entes financiados. Ingênuo, imprudente e arriscado. Quem paga a banda, escolhe a música, certo? Investidores não fazem doações, eles aportam recursos visando retornos. Portanto, é legítimo problematizar o que Estados e empresas esperam ao patrocinar eventos como a Parada de São Paulo. Em um jogo estratégico, quando um grupo não tem recursos financeiros, materiais, ou simbólicos suficientes para sustentar suas ações, ele precisa se aliar a entes poderosos. Há, então, sempre o risco de que a agenda do grupo menos favorecido se perca diante da do ente financiado. Por isso, é salutar manter-se atento à pergunta de Marco e Nana sobre “a quem servem, como se organizam,[e] quais valores promovem” as ações políticas da comunidade LGBTI+
Presença das cores nacionais na Parada reflete uma análise sobre como se apresentam as configurações de força nas arenas políticas atuais
A entrada da Parada no calendário oficial de eventos da cidade de São Paulo em 1999, seu uso como locação para filmagens de seriado da Netflix em 2016 e o apoios criticados por Marco – do Consulado do Estado de Israel em 2018 e da fabricante de cigarros Phillip Morris em 2024 – foram frutos de escolhas estratégicas de sua organização. Decisões nas quais o resultado da seleção de uma opção significou desistir dos benefícios da outra(s). Ter recursos, visibilidade e aliados poderosos gerou ganhos e perdas distintos do que não tê-los, ser invisível aos olhos do grande público e não ter suporte de figuras relevantes. Por isso, em vez de uma condenação disfarçada como a contida no apontamento sobre a falta de parâmetros éticos das Paradas LGBTI+ no Brasil, se os autores avaliam que tais eventos perderam sua função contestadora, seria adequado dizer isso explicitamente e apontar uma rota alternativa como a explorada, desde 2019, pelos ativistas nova-iorquinos da Reclaim Pride Coalition (Coalizão para Recuperar o Orgulho).
O grupo se articulou quando Nova York sediou a World Pride – ocasião na qual ficou óbvio que a dimensão comercial, turística e corporativa dos eventos de junho há muito silenciava vozes e necessidades da comunidade LGBTI+. Desde então, a coalizão promove a Queer Liberation March, que acontece no mesmo dia da Parada oficial. Neste ano, ambas ocorrerão no dia 30 de junho, e, enquanto o evento oficial tem como tema “Refletir. Empoderar. Unir”, a Queer Liberation March vem se organizando desde janeiro contra a Guerra na Palestina e marchará contra o genocídio perpetrado pelo Estado de Israel.
E por falar em agenda, cabem muitas ressalvas quanto ao modo como os autores analisam a presença das cores verde e amarelo na Parada. E mais ainda quanto à equiparação apressada desse uso a “uma evocação direta e acrítica” da “gramática patriótica da ultradireita”. A disputa pelos símbolos nacionais é correlata a uma tentativa de afirmar quem cabe e quem não cabe nessa nação, de definir a quem ela deve proteção e segurança, e a quem ela precisa vigiar e punir.
Vivemos em um tempo em que as consequências das crescentes desigualdades afetam desproporcionalmente as populações historicamente marginalizadas, desencadeiam sentimentos de privação relativa nas classes médias, e alimentam a desconfiança na capacidade de partidos e governos de agir em nome do interesse da maioria dos seus constituintes. Por isso, a nação tem voltado a agenda de luta de muitos movimentos sociais, pois ainda que as necessidades e anseios sejam globais, as disputas legislativas e orçamentárias são travadas em nível nacional.
O pertencimento nacional – um tema espinhoso para grupos com aspiração universal – vem ganhando espaço nas lutas da população LGBTI+ no Brasil. O tópico apareceu de forma mais genérica na maior Parada do país em slogans como “Democracia” (2020), “Vote com orgulho — por uma política que representa” (2022) e “Queremos políticas sociais para LGBTI+ por inteiro e não pela metade” (2023).
Em 2024, depois da experiência assustadora promovida por um governo omisso com as pautas hegemônicas na comunidade e alinhando com os interesses de gays e lésbicas comprometidos com valores conservadores, o assunto comparece de forma explícita na tentativa de disputar diretamente quem pode fazer uso do verde e amarelo; no grito “chega de retrocessos legislativos”; e no clamor para que a comunidade “vote consciente por direitos da população LGBTI+”.
A complexidade do momento histórico que vivemos, bem como a necessidade de articulação para as corridas eleitorais em 2024, exige dos pesquisadores atenção às necessidade de reorganização simbólica e material de grupos historicamente minorizados depois de períodos muito áridos. Ainda que a presença das cores nacionais na Parada possam até não corresponder “em nada ao que escreveu Judith Butler sobre modos desestabilizadores de estar e aparecer no mundo e na política”, elas refletem uma análise sobre como se apresentam as configurações de força nas arenas políticas atuais e tentam responder a perene questão sobre o que fazer.
Se inspirar em Madonna e disputar a camisa da Seleção é uma tentativa de priorizar ações que vão precisar ser revistas, refeitas e reorganizadas ao longo do tempo. Tarefa para qual críticas não fatalistas e análises propositivas de acadêmicos como Marco, Nana e eu podem ter alguma utilidade.
André Sales é doutor em psicologia. Pesquisador FAPESP associado ao PPG de psicologia da PUC/SP e pesquisador visitante na CUNY em Nova York (EUA) e na York University, em Toronto. Autor de “Militancy and Prefigurative Activism: the Case of Brazil” (ed. Springer, 2023); “Militância e ativismo: cinco ensaios sobre ação coletiva e subjetividade” (ed. Unesp, 2021); “Militância e ativismo depois de Junho de 2013: e daí?” (ed. Comprehensive Peer, 2020). Editor da série Psicologia Política Pop.