O Brasil tem grandes vantagens competitivas no mercado desse combustível — que cresce 55% ao ano e é uma das principais soluções para conter o aquecimento global
Está nascendo um mercado que neste momento já tem vendas globais de 4 bilhões de dólares e deve atingir 332 bilhões de dólares em apenas uma década, com a exuberante taxa de crescimento anual de 55%, segundo estimativa da consultoria indo-canadense Precedence Research.
Trata-se do mercado de hidrogênio verde, que lá pelo ano 2050 poderá responder por 22% da demanda energética do planeta, levando a uma redução de 20% das emissões de gases de efeito estufa, conforme cálculos do Hydrogen Council, uma associação que representa os maiores produtores do combustível.
Esta é não só uma das maneiras pelas quais se pretende reduzir os efeitos do aquecimento global, mas também uma indústria na qual o Brasil pode ter um papel de destaque.
“Há uma oportunidade real para o Brasil liderar o desenvolvimento de tecnologias, modelos de negócio e implementação de hidrogênio verde”, diz o engenheiro mecânico Vinícius Picanço Rodrigues, professor de sustentabilidade e operações do Insper.
De acordo com um estudo da consultoria McKinsey, a produção brasileira de hidrogênio verde tem potencial de receitas de 15 bilhões a 20 bilhões de dólares até 2040. E os investimentos para isso já estão aparecendo. O Instituto Nacional de Energia Limpa (Inel), composto por empresas interessadas nesse mercado, estima que os projetos anunciados no país já contemplem investimentos de 30 bilhões de dólares. O número ainda deve crescer bastante neste ano, pois uma boa parcela dos países europeus está se preparando para lançar concorrências internacionais para importação do produto.
A Alemanha saiu na frente. Em crise energética provocada pelas sanções à Rússia, sua grande fornecedora de gás natural, por causa da invasão da Ucrânia, o país realizou no final de fevereiro o primeiro leilão global para importação de hidrogênio verde, com contratos de dez anos e entrega do combustível prevista para 2024. É só a primeira rodada de negociações, e já envolve investimentos de cerca de 900 milhões de euros; outros leilões serão realizados ainda este ano, com investimentos de mais 3,5 bilhões de euros e entregas agendadas para até 2036.
O Brasil, que ainda não tem produção do combustível, ficou de fora dessas primeiras concorrências. Mas já há uma corrida em vários estados para criar as bases da nova indústria.
Do cinza ao verde
O hidrogênio é um elemento com alto valor calórico — quase o triplo do diesel, da gasolina e do gás natural. Isso em si já é fantástico, mas o melhor é que seu uso não libera gases poluentes. O hidrogênio não aproveitado vai para a atmosfera, onde se combina com o oxigênio e forma… vapor de água.
A utilização de hidrogênio como fonte de energia não é exatamente uma novidade. O mundo produz pouco mais de 100 milhões de toneladas dele a cada ano, de várias maneiras. A principal delas é por meio de uma reação química que combina hidrocarbonetos (usualmente gás natural) e água. O problema é que essa reação libera gás carbônico (CO2). O hidrogênio resultante é por isso chamado de hidrogênio cinza.
Existe também o hidrogênio azul, assim chamado quando o processo de produção inclui a captura e armazenamento de parte do CO2 liberado.
O hidrogênio verde é aquele que não libera nenhum poluente. O método mais comum de obtê-lo é pela eletrólise da água: uma corrente elétrica passa por um catalisador e inicia uma reação que separa a molécula de água em seus constituintes, hidrogênio e oxigênio. Ele também pode ser produzido pela reforma de biomassa e biocombustíveis (como o etanol), um método que está sendo aprimorado.
Obviamente, a obtenção do hidrogênio pela eletrólise só pode ser considerada verde se a energia usada para produzir a corrente elétrica for proveniente de fontes renováveis. E é aí que está a grande vantagem do Brasil, especialmente o Nordeste, com seu enorme potencial de energia solar e eólica, além da hídrica, predominante no país.
Os projetos pioneiros
Não à toa, os maiores projetos de produção de hidrogênio verde (apelidado de H2V em português, ou GH2 em inglês) estão no Nordeste. No início deste ano, o grupo português EDP produziu no Complexo de Pecém, no Ceará, a primeira molécula de H2V do país. Resultado de um projeto de pesquisa e desenvolvimento do Complexo, com investimento de 42 milhões de reais, a fábrica da EDP deverá produzir 22,5 quilos de H2V por hora.
O combustível produzido ali deverá substituir o carvão utilizado na termelétrica da EDP em Pecém. Se tudo correr bem, será o passo inicial para a expansão do processo para uma escala industrial, conforme disse Cayo Moraes, gerente de operações da EDP, à Revista FAPESP, no ano passado.
Além desta iniciativa, o Complexo do Pecém criou o Hub de Hidrogênio Verde e já assinou 24 memorandos de entendimento com empresas para a produção de H2V. A região até já publicou uma resolução para licenciamento ambiental de usinas de H2V.
No Polo Petroquímico de Camaçari, na Bahia, a fabricante de fertilizantes paulista Unigel está investindo 122 milhões de dólares numa fábrica de hidrogênio que usará três eletrolisadores construídos na Alemanha. A fábrica deve começar a funcionar até o final deste ano, com capacidade de produzir 10.000 toneladas de H2V e 60.000 toneladas de amônia verde anuais (a amônia verde, além de servir para a produção de fertilizantes, pode ser convertida em hidrogênio verde).
Se tudo der certo, em 2025 vai quadruplicar sua produção. Não será, no entanto, uma fábrica 100% verde: ela vai utilizar energia eólica e a energia da rede nacional, que provém majoritariamente de hidrelétricas, restando cerca de um quarto de fontes não renováveis.
Em Goiás, o governo anunciou a elaboração de uma política para incentivar a produção de H2V e seu uso no transporte público, além da produção de amônia verde e seu uso na produção de fertilizantes.
O Rio Grande do Sul, que tem grande potencial de energia solar e eólica mapeado, também começou a estudar medidas de estímulo à produção de H2V, com expectativa de elevar o PIB estadual em 62 bilhões de reais até 2040.
No Rio de Janeiro, a Shell tem planos de instalar uma fábrica de H2V em 2025. Em Belo Horizonte, o grupo alemão Neuman & Esser, fabricante de compressores, lançou no dia 12 de março a pedra fundamental da primeira fábrica de geradores de H2V da América Latina, um investimento de 70 milhões de reais em expansão de seu parque industrial, com geração de 75 empregos diretos e cerca de 200 indiretos.
No Paraná, a Copel, companhia estadual de energia, recebeu 71 propostas de pesquisa de tecnologias para produzir H2V a partir de biomassa, biocombustíveis e outros resíduos orgânicos. As propostas vieram de 53 empresas de 17 estados. Os projetos escolhidos receberão até 7,6 milhões de reais para a busca de soluções em armazenamento, distribuição e novas aplicações para o hidrogênio verde.
Também há notícia de acordos estaduais com produtores de energia nos estados do Rio Grande do Norte, Piauí e Pernambuco. Em resumo, há uma percepção generalizada da oportunidade e muita gente já está se mexendo para aproveitá-la.
De acordo com um mapeamento do Instituto Nacional de Energia Limpa (Inel), os projetos anunciados no Brasil já somam 30 bilhões de dólares. Essa quantia ainda está na fase do planejamento, não do comprometimento, mas até o final do ano deverá haver mais projetos, à medida que os países europeus sigam a Alemanha e comecem a lançar as primeiras concorrências internacionais para comprar H2V.
Concorrência mundial
É claro que o Brasil não está sozinho. Só no ano passado, pelo menos 25 países se comprometeram a investir uma quantia estimada em 73 bilhões de dólares pela organização de pesquisas e análises londrina Carbon Tracker. A Alemanha é responsável por 14% desses recursos.
De acordo com o Hydrogen Council, uma organização fundada em 2017 no Fórum Econômico de Davos, há 680 propostas de unidades de larga escala para produção de H2V, com investimentos calculados em 240 bilhões de dólares. Contudo, apenas 10% disso chegou ao estágio de decisão final de investimento. O interesse, entretanto, é crescente. O conselho, que no primeiro ano tinha 13 organizações dos setores de energia, transporte e indústria, agora tem perto de 150 membros, companhias multinacionais que englobam toda a cadeia de valor do hidrogênio.
Os investimentos para produção de eletrolisadores também dispararam no final do ano passado, e os mercados começaram a se estruturar. A União Europeia lançou em maio novas metas de utilização de energias renováveis, com planos de importar 10 milhões de toneladas por ano de hidrogênio, sendo 40% disso na forma de amônia verde.
Os Estados Unidos aprovaram em agosto um robusto plano de incentivos fiscais, com créditos de até 3 dólares por quilo de hidrogênio produzido durante os dez primeiros anos da fábrica. O Canadá prevê adotar uma política similar.
Há também muitos planos de investimentos mirando a África. Faz todo o sentido. A região do deserto do Sahara tem um enorme potencial de energia solar e fica relativamente perto da Europa.
Para se posicionar neste novo mercado, portanto, o Brasil não pode perder tempo. Por enquanto, o país não tem estratégia nacional. É como se tivéssemos acordado para a oportunidade, mas ainda não tivéssemos saído da cama.
Para acelerar esse processo, em meados de março o Inel levou um grupo de representantes das empresas a um encontro com o vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, e com o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira. Ficou acertada a criação de um Grupo de Trabalho Interministerial para avançar nas principais questões do setor.
Entre elas estão a necessidade de uma infraestrutura elétrica abrangente, segura e de custo razoável, e de uma rede de gasodutos para escoar o H2V. Além disso, é preciso investir na tecnologia de produção de equipamentos (eletrolisadores, compressores de gás, máquinas para reformar o biogás) e sistemas de armazenamento do combustível.
Avançar — com cautela
Embora o mundo caminhe inexoravelmente para o H2V como parte da solução para o aquecimento global e o Brasil tenha de se apressar para aproveitar oportunidades, é preciso avançar com cautela. “O Brasil está pressionado para receber investimentos. Mas nós temos que entender quais são os efeitos dessas ações para a população”, diz Ricardo José de Almeida, professor de finanças do Insper que dá aulas de finanças sustentáveis em cursos de pós-graduação.
“Se você não inclui os riscos da atividade nos cálculos, a riqueza que a empresa produz pode estar sendo expropriada do meio que a circunda”, afirma. Para que esses riscos venham à tona e sejam considerados, Almeida cita a necessidade de haver coalizões sociais que estudem a questão. “É com esse olhar que a gente precisaria avaliar o hidrogênio verde.”
“Sempre há contrapontos”, diz Picanço, também do Insper. “É saudável fazer um teste de estresse da tecnologia e de sua viabilidade. Acho que há vários pontos de atenção para o desenvolvimento da tecnologia, mas é difícil defender o total abandono de projetos nesse setor.”
Também é preciso lembrar que o H2V não é uma “bala de prata” contra o aquecimento global, afirma. O que está em jogo é uma transição de modelo energético, e não se pode esquecer que há ciclos longos em investimentos desse tipo, tanto do ponto de vista de capital quanto do ponto de vista de tecnologia e desenvolvimento de capital humano.
A distribuição do combustível é um dos obstáculos pela frente
Os desafios a vencer
O mercado de hidrogênio verde ainda tem muitos obstáculos a superar. Eis alguns:
⇒ 1. O primeiro é a viabilidade econômica. O custo de produção do hidrogênio cinza gira em torno de 1,50 dólar por quilo. Quer dizer, custava — antes da guerra na Ucrânia. Com o brutal aumento de preço do gás provocado pelas sanções à Rússia, o custo mais do que dobrou, para 3,30 dólares por quilo, já que o hidrogênio cinza é feito principalmente com a reforma do gás metano. Conforme avaliação da Rethink Energy, uma organização de análises do mercado de energia, o preço do gás não deve cair antes de 2024.
O hidrogênio verde ainda é mais caro; dependendo do local em que seja produzido, o custo da energia necessária no processo combinado com os investimentos e os custos de distribuição pode levar o preço a 15 dólares por quilo. Em média, o H2V sai por cerca de 6 dólares por quilo; mas já há lugares que conseguem produzi-lo por menos de 4 dólares por quilo.
Isso hoje. “A tendência é que o preço caia ao longo do tempo, seguindo curvas bem conhecidas de barateamento das tecnologias”, diz o professor Picanço. Isso deverá acontecer pelo barateamento das energias eólica e solar (que serão de 27% e 46%, respectivamente, até 2040, pelos cálculos da consultoria McKinsey), pela invenção de novos tipos de eletrolisadores, pelo ganho de escala… Segundo a firma de pesquisas sobre commodities BloombergNEF, no final da década o preço do H2V já estará por volta de 2,5 dólares por quilo, mais barato do que o hidrogênio cinza ou azul. Em 2050, algumas partes do mundo já conseguiriam produzir H2V por um preço na faixa de 0,70 a 1,60 dólar por quilo, preço competitivo com o do gás natural.
⇒ 2. Um segundo desafio é o transporte. “O hidrogênio é altamente volátil e inflamável, portanto deve haver um foco muito grande em medidas de segurança para transporte e armazenagem”, explica Picanço. Este ponto é fundamental porque, afinal de contas, o grande motivo para investir em H2V é a possibilidade de transportar energia dos lugares onde ela é abundante para os locais onde a demanda é maior. Não fosse essa necessidade, não faria sentido investir em um processo que consome mais energia do que entrega.
Por ser o menor e mais leve elemento da Terra, o hidrogênio precisa ser pressurizado para que uma boa quantidade dele caiba num cilindro. Ele é transportado na forma gasosa ou líquida (em baixíssimas temperaturas). Também podem ser construídos gasodutos, mas o investimento só vale a pena se a demanda for enorme e assim permaneça por muitos anos.
Uma outra forma de transportar o H2V é através de hidretos metálicos, ou seja, misturando-o a algum outro metal, o que o torna mais estável e seguro. No local de consumo, ele teria de ser novamente separado. Esta é uma área que está sendo objeto de várias pesquisas mundo afora.
A amônia verde é também um meio de transportar o hidrogênio, que pode depois ser recuperado por meio de reações químicas.
⇒ 3. Também há o desafio da quantidade de investimentos. Primeiro, há uma vantagem que se torna uma grande incerteza. Como ele pode ser obtido de diversas formas, há o risco de investir em uma fábrica e, mais para a frente, outros métodos se mostrarem mais eficientes para ganhar mercado. “Soma-se a isso o fato de que a produção exige altos investimentos em capital fixo”, lembra Picanço. Por isso, diz ele, “governos e investidores precisarão assumir algum grau de risco para dar vida aos projetos do setor”.
⇒ 4. Finalmente, há os obstáculos regulatórios. Na Europa, por exemplo, está sendo considerado verde apenas o hidrogênio obtido com uso de energia solar ou eólica, deixando de fora a energia hidrelétrica — o que prejudica alguns projetos brasileiros. Se uma fábrica se unir à rede elétrica nacional, por exemplo, pode baratear a produção em cerca de 10%, mas o hidrogênio resultante não seria totalmente verde.
As dificuldades neste campo incluem as regras de segurança, os investimentos em infraestrutura, as renúncias fiscais para incentivar a adoção da tecnologia, entre outros fatores.
Em busca de soluções
Não há dúvida, porém, de que este mercado vai se estabelecer. Boa parte desses problemas já está sendo foco de pesquisas.
No final de fevereiro, por exemplo, o programa iH2, da Aliança Brasil-Alemanha pelo hidrogênio verde, selecionou oito projetos de universidades brasileiras para receberem até 1,2 milhão de euros neste ano. Um deles é um sistema da Universidade Federal do Ceará que utiliza células de dessalinização e eletrólise a partir do glicerol — para utilizar água do mar, em vez de água potável, e para aproveitar o biodiesel.
Um outro projeto, na PUC do Rio de Janeiro, investiga quanto de hidrogênio poderia ser usado em motores a combustão para reduzir as emissões de poluentes.
Independentemente do apoio alemão, na Universidade Federal de São Carlos, um grupo estuda formas de melhorar a eficiência dos eletrolisadores com materiais capazes de reduzir o consumo de energia necessária para produzir o hidrogênio, num projeto financiado pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estados de São Paulo).
Há, também, os diversos estudos para aprimorar a produção de hidrogênio a partir de lixo doméstico ou rejeitos industriais.
Não há dúvida, portanto, de que o Brasil tem uma baita oportunidade pela frente. Mas não é só isso. Como diz Picanço, do Insper: “Acredito que a capacidade de gerar receita é apenas uma das variáveis a considerar. O que adianta cofres públicos cheios e receitas corporativas crescentes se passarmos a viver em um planeta mais quente, pobre, instável e — em última instância — praticamente inabitável em muitas regiões? É isso que está em jogo quando se fala em transição energética.”
David Cohen