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Diário de Suzano

A gordura do bem (1 notícias)

Publicado em 14 de junho de 2009

Um dos maiores especialistas em metabolismo celular do Brasil, Leopoldo De Meis, do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ, já se dedica a estudar a gordura marrom — um tipo de gordura que há dois meses ninguém sabia estar presente no organismo adulto e que promete revolucionar a compreensão da obesidade.

Vencedor do Prêmio Conrado Wessel de 2009, o cientista fala nesta entrevista sobre os caminhos de pesquisa que se abrem com a descoberta — anunciada em abril em estudos nos EUA e na Europa — de que a gordura marrom está presente em adultos e é fundamental para o metabolismo.

O prêmio é considerado um dos mais importantes da ciência no país. O vencedor é escolhido por uma comissão formada por representantes de instituições científicas, parceiras da Fundação Conrado Wessel, como Fapesp, Capes, CNPq, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e as academias brasileiras de Letras (ABL) e de Ciências (ABC).

O senhor tem vários trabalhos relacionados aos mecanismos de transformação de energia em nível celular e molecular. O que eles demonstram?

LEOPOLDO DE MEIS: Demonstrei que uma mesma molécula pode ser de alta e de baixa energia, dependendo do meio em que está. Isso porque a energia não é necessária para fazer o composto em si, mas sim para fazer variar a atividade da água presente. No início este conceito foi considerado esquisito, mas hoje, é um conceito básico de termodinâmica das células, universalmente aceito.

Como esse trabalho se relaciona à compreensão da obesidade?

DE MEIS: Quando comemos, colocamos energia para dentro. Essa energia serve para manter a temperatura do corpo e fazer o organismo funcionar. Parte do excesso é dissipado na forma de calor, mas parte se acumula na forma de gordura. Quanto mais calor é dissipado, menos gordura é acumulada. A quebra de moléculas de alta energia, como a ATP, gera calor. Há na célula um grupo de enzimas que aceleram milhões de vezes a velocidade de quebra de ATP. Na reação de quebra, parte da energia liberada é utilizada para o trabalho e uma outra parte se dissipa na forma de calor. Há alguns anos se achava que as enzimas só aceleravam a reação e não tinham nenhuma ingerência sobre o quanto de energia se perdia como calor. Em meu laboratório, descobrimos que este conceito não se aplica a todas as enzimas. Muitas enzimas que promovem a quebra de compostos de alta energia podem regular o quanto da energia liberada vai para calor e o quanto vai ser transformada em trabalho e, dependendo das condições usadas, pode produzir mais ou menos calor.

O senhor identificou alguma substância específica, algo que possa ser usado?

DE MEIS: Já identificamos substâncias que podem interferir na enzima, modificando a proporção entre calor e trabalho, mas nada de uso prático. Como uma das causas da obesidade depende do balanço entre o calor gasto e o não gasto talvez, no futuro, estes trabalhos possam auxiliar na busca para a cura da obesidade.

Em que o seu grupo trabalha agora?

DE MEIS: Começamos a trabalhar com a gordura marrom. Se acreditava que ela estava presente apenas em roedores e crianças recém-nascidas. Mas, este ano, diversos laboratórios comprovaram que ela está presente também em adultos. Está localizada no tecido muscular, entremeada entre as fibras musculares.

Qual é a função da gordura marrom?

DE MEIS: A gordura marrom é responsável pela transformação da energia em calor. Quem dá a ordem é o cérebro, mas são os músculos e a gordura marrom que a executam. A gordura marrom seria o principal órgão produtor de calor do organismo.

Como a descoberta da gordura marrom pode alterar o entendimento sobre o ganho de peso e o emagrecimento?

DE MEIS: A gordura marrom é um tecido especializado que, quando estimulado, dissipa muita energia na forma de calor. Se entendermos os mecanismos das células para dissipar energia, poderemos passar à segunda etapa que é como aumentar sua atividade nos casos de obesidade. Lembre-se: quanto mais energia gastamos, menos gordura acumulamos.

É possível estimulá-la?

DE MEIS: É o que queremos descobrir.

De onde vem a gordura marrom?

DE MEIS: Se pensava que a gordura branca se transformava em gordura marrom, ao ser enriquecida por mitocôndrias. Hoje sabemos que não é isso. O músculo pode se transformar em gordura marrom e vice-versa, como mostraram estudos de Harvard. Mas não sabemos ainda o quanto dela existe ou o que a faz

crescer.

Por que ela se chama gordura marrom?

DE MEIS: Por causa das mitocôndrias, que têm essa cor. Essa gordura é repleta de mitocôndrias, que são as usinas energéticas das células. A gordura branca é formada apenas de lipídios e tem poucas mitocôndrias.

É uma gordura boa, então?

DE MEIS: Em termos de (não) engordar, sim, podemos dizer que é uma gordura boa. Parte do excesso de peso cada vez está relacionada à ingestão excessiva de alimentos muito calóricos, ao sedentarismo.

Mas existe uma parte relacionada às características do indivíduo?

DE MEIS: Sim, claro. Há pessoas que comem toneladas de comida e não engordam, enquanto outras engordam horrores. As pessoas que liberam muito mais calor tendem a ser mais magras. O exemplo extremo é o da pessoa que sofre de hipertireoidismo: ela dissipa muito mais calor que os outras e nunca engorda. Já há as que sentem calor, mas não dissipam calor. Essas engordam mais.

Então pode-se dizer que não somos exatamente o que comemos?

DE MEIS: Somos e não somos. Veja, na França, onde se come pouco e de forma bem balanceada, a incidência de adiposidade é muito menor do que nos EUA, onde se ingere quantidades muito maiores de comidas menos saudáveis, ricas em carboidratos e gorduras.

Se a gordura marrom se forma no músculo, será que a prática de exercícios poderia estar relacionada ao seu surgimento ou ao seu aumento?

DE MEIS: Não sabemos ainda. Mas o exercício é importante porque ele quebra ATP e libera muito calor. Dissipar calor é importante para o emagrecimento. Por isso que esse negócio de botar roupa fechada para praticar exercício, achando que vai suar mais, é bobagem. Quanto menos roupa melhor para dissipação do

calor.

De que forma a descoberta da gordura marrom pode direcionar o desenvolvimento de novos medicamentos?

DE MEIS: Esta resposta infelizmente ainda está longe. Depois do entendimento dos mecanismos de dissipação de energia, poderemos iniciar a busca de substâncias que interfiram no ciclo de transformação de energia em calor.

Como é o processo da fome?

DE MEIS: O processo começa no cérebro, onde há centros que regulam a fome e outros que comandam a produção de calor. Os dois centros se intercomunicam. Como eu disse antes, o calor é necessário para manter a temperatura corporal e fazer o organismo funcionar. A fome é o resultado de dois processos que atuam simultaneamente: a ativação do centro da fome inibe o da dissipação de energia na forma de calor e vice-versa. Por isso, depois de uma feijoada sentimos calor e quando estamos com muita fome sentimos frio.

Seria mais fácil chegar ao controle do peso com drogas que atuem sobre o cérebro ou por esses outros processos?

DE MEIS: Já houve várias tentativas de se controlar o peso atuando no cérebro, no controle da sensação de fome, mas isso vem se revelando muito complicado. Ainda não sabemos qual o caminho mais fácil.