Um dos maiores especialistas em metabolismo celular do Brasil, Leopoldo De Meis, do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ, já se dedica a estudar a gordura marrom — um tipo de gordura que há dois meses ninguém sabia estar presente no organismo adulto e que promete revolucionar a compreensão da obesidade.
Vencedor do Prêmio Conrado Wessel de 2009, o cientista fala nesta entrevista sobre os caminhos de pesquisa que se abrem com a descoberta — anunciada em abril em estudos nos EUA e na Europa — de que a gordura marrom está presente em adultos e é fundamental para o metabolismo.
O prêmio é considerado um dos mais importantes da ciência no país. O vencedor é escolhido por uma comissão formada por representantes de instituições científicas, parceiras da Fundação Conrado Wessel, como Fapesp, Capes, CNPq, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e as academias brasileiras de Letras (ABL) e de Ciências (ABC).
O senhor tem vários trabalhos relacionados aos mecanismos de transformação de energia em nível celular e molecular. O que eles demonstram?
LEOPOLDO DE MEIS: Demonstrei que uma mesma molécula pode ser de alta e de baixa energia, dependendo do meio em que está. Isso porque a energia não é necessária para fazer o composto em si, mas sim para fazer variar a atividade da água presente. No início este conceito foi considerado esquisito, mas hoje, é um conceito básico de termodinâmica das células, universalmente aceito.
Como esse trabalho se relaciona à compreensão da obesidade?
DE MEIS: Quando comemos, colocamos energia para dentro. Essa energia serve para manter a temperatura do corpo e fazer o organismo funcionar. Parte do excesso é dissipado na forma de calor, mas parte se acumula na forma de gordura. Quanto mais calor é dissipado, menos gordura é acumulada. A quebra de moléculas de alta energia, como a ATP, gera calor. Há na célula um grupo de enzimas que aceleram milhões de vezes a velocidade de quebra de ATP. Na reação de quebra, parte da energia liberada é utilizada para o trabalho e uma outra parte se dissipa na forma de calor. Há alguns anos se achava que as enzimas só aceleravam a reação e não tinham nenhuma ingerência sobre o quanto de energia se perdia como calor. Em meu laboratório, descobrimos que este conceito não se aplica a todas as enzimas. Muitas enzimas que promovem a quebra de compostos de alta energia podem regular o quanto da energia liberada vai para calor e o quanto vai ser transformada em trabalho e, dependendo das condições usadas, pode produzir mais ou menos calor.
O senhor identificou alguma substância específica, algo que possa ser usado?
DE MEIS: Já identificamos substâncias que podem interferir na enzima, modificando a proporção entre calor e trabalho, mas nada de uso prático. Como uma das causas da obesidade depende do balanço entre o calor gasto e o não gasto talvez, no futuro, estes trabalhos possam auxiliar na busca para a cura da obesidade.
Em que o seu grupo trabalha agora?
DE MEIS: Começamos a trabalhar com a gordura marrom. Se acreditava que ela estava presente apenas em roedores e crianças recém-nascidas. Mas, este ano, diversos laboratórios comprovaram que ela está presente também em adultos. Está localizada no tecido muscular, entremeada entre as fibras musculares.
Qual é a função da gordura marrom?
DE MEIS: A gordura marrom é responsável pela transformação da energia em calor. Quem dá a ordem é o cérebro, mas são os músculos e a gordura marrom que a executam. A gordura marrom seria o principal órgão produtor de calor do organismo.
Como a descoberta da gordura marrom pode alterar o entendimento sobre o ganho de peso e o emagrecimento?
DE MEIS: A gordura marrom é um tecido especializado que, quando estimulado, dissipa muita energia na forma de calor. Se entendermos os mecanismos das células para dissipar energia, poderemos passar à segunda etapa que é como aumentar sua atividade nos casos de obesidade. Lembre-se: quanto mais energia gastamos, menos gordura acumulamos.
É possível estimulá-la?
DE MEIS: É o que queremos descobrir.
De onde vem a gordura marrom?
DE MEIS: Se pensava que a gordura branca se transformava em gordura marrom, ao ser enriquecida por mitocôndrias. Hoje sabemos que não é isso. O músculo pode se transformar em gordura marrom e vice-versa, como mostraram estudos de Harvard. Mas não sabemos ainda o quanto dela existe ou o que a faz
crescer.
Por que ela se chama gordura marrom?
DE MEIS: Por causa das mitocôndrias, que têm essa cor. Essa gordura é repleta de mitocôndrias, que são as usinas energéticas das células. A gordura branca é formada apenas de lipídios e tem poucas mitocôndrias.
É uma gordura boa, então?
DE MEIS: Em termos de (não) engordar, sim, podemos dizer que é uma gordura boa. Parte do excesso de peso cada vez está relacionada à ingestão excessiva de alimentos muito calóricos, ao sedentarismo.
Mas existe uma parte relacionada às características do indivíduo?
DE MEIS: Sim, claro. Há pessoas que comem toneladas de comida e não engordam, enquanto outras engordam horrores. As pessoas que liberam muito mais calor tendem a ser mais magras. O exemplo extremo é o da pessoa que sofre de hipertireoidismo: ela dissipa muito mais calor que os outras e nunca engorda. Já há as que sentem calor, mas não dissipam calor. Essas engordam mais.
Então pode-se dizer que não somos exatamente o que comemos?
DE MEIS: Somos e não somos. Veja, na França, onde se come pouco e de forma bem balanceada, a incidência de adiposidade é muito menor do que nos EUA, onde se ingere quantidades muito maiores de comidas menos saudáveis, ricas em carboidratos e gorduras.
Se a gordura marrom se forma no músculo, será que a prática de exercícios poderia estar relacionada ao seu surgimento ou ao seu aumento?
DE MEIS: Não sabemos ainda. Mas o exercício é importante porque ele quebra ATP e libera muito calor. Dissipar calor é importante para o emagrecimento. Por isso que esse negócio de botar roupa fechada para praticar exercício, achando que vai suar mais, é bobagem. Quanto menos roupa melhor para dissipação do
calor.
De que forma a descoberta da gordura marrom pode direcionar o desenvolvimento de novos medicamentos?
DE MEIS: Esta resposta infelizmente ainda está longe. Depois do entendimento dos mecanismos de dissipação de energia, poderemos iniciar a busca de substâncias que interfiram no ciclo de transformação de energia em calor.
Como é o processo da fome?
DE MEIS: O processo começa no cérebro, onde há centros que regulam a fome e outros que comandam a produção de calor. Os dois centros se intercomunicam. Como eu disse antes, o calor é necessário para manter a temperatura corporal e fazer o organismo funcionar. A fome é o resultado de dois processos que atuam simultaneamente: a ativação do centro da fome inibe o da dissipação de energia na forma de calor e vice-versa. Por isso, depois de uma feijoada sentimos calor e quando estamos com muita fome sentimos frio.
Seria mais fácil chegar ao controle do peso com drogas que atuem sobre o cérebro ou por esses outros processos?
DE MEIS: Já houve várias tentativas de se controlar o peso atuando no cérebro, no controle da sensação de fome, mas isso vem se revelando muito complicado. Ainda não sabemos qual o caminho mais fácil.