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A garrafinha não é a única vilã de um mundo saturado de plástico (1 notícias)

Publicado em 18 de maio de 2025

Trocar a garrafa de água descartável ajuda, mas não resolve o problema dos microplásticos, que já estão no ar, no mar e dentro de nós. Especialistas indicam o que fazer

Você pode não enxergar tão facilmente, mas os microplásticos são onipresentes. Eles já foram encontrados em pulmões, fígados, cérebros, placentas e até no leite materno. Quase invisíveis a olho nu, essas partículas sólidas minúsculas vêm se acumulando silenciosamente no ar, na água, nos alimentos e nos organismos — no nosso e no dos demais seres vivos.

Parte dessa contaminação vem de um hábito banal do cotidiano: beber água em garrafinhas plásticas descartáveis. A exposição ao calor, à luz, o atrito causado pelo transporte do objeto , o abre-e-fecha, a reutilização e a própria fabricação desses recipientes favorecem a liberação de fragmentos microscópicos no líquido que bebemos.

Especialistas alertam, no entanto, que o problema é muito mais complexo do que simplesmente abandonar esse tipo de embalagem. Esses corpos diminutos são hoje um sintoma de algo maior — um mundo saturado de plástico

Embora existam indícios preocupantes, ainda são escassos os estudos conclusivos a respeito dos efeitos do microplástico na saúde humana. E mirar exclusivamente na garrafa como grande vilã pode ser uma armadilha simplista. Segundo Mari Krüger , bacharel em biologia e divulgadora científica , trocar a peça descartável por uma reutilizável é um gesto individual benéfico, mas insuficiente — não é ela que está “destruindo o planeta”. A mudança efetiva, diz, exige ações estruturais, como políticas públicas, regulação industrial e alternativas viáveis para todas as camadas da população.

Microplásticos são partículas de plástico com tamanho entre um micrômetro e cinco milímetros, provenientes da fragmentação de itens grandes, de sacolas, pneus e garrafas a roupas sintéticas, ou fabricadas já em um tamanho minúsculo, como os grânulos usados em cosméticos, como cremes esfoliantes, no glitter e na pasta dental.

“Eles são classificados como primários, quando já nascem pequenos, ou secundários, quando derivam da quebra de plásticos maiores”, explica o professor Walter Ruggeri Waldman, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e pesquisador do projeto “Destino e impactos de microplásticos e pesticidas em matrizes aquáticas e terrestres em contextos agrícolas” , da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

A liberação desses pedacinhos ocorre tanto por processos ambientais, como o esfacelamento de plásticos descartados na natureza, quanto por ações comuns do dia a dia. No caso das garrafinhas de água, sejam as mais duras ou as bem molengas — você sabe, elas dão um trabalhão para abrir, uma certa raiva até —, as altas temperaturas, a fricção e o simples rosquear da tampa já são suficientes para liberar microplásticos na bebida.

De acordo com Lucas Gonçalves Queiroz, biólogo e pós-doutorando do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), essas partículas podem ter diversas origens, inclusive aparecer durante a produção da garrafa, liberadas pelo contato com o maquinário industrial, ou já estarem presentes na água captada para o engarrafamento. “Dependendo do nível de proteção da fonte, a água pode vir contaminada de lá”, comenta.

Esquecer uma garrafinha no carro em um dia quente pode, ainda, intensificar a saída desses pequenos elementos na água. A questão, porém, não se resume a isso. Mesmo quem tem um recipiente de uso contínuo, produzido com um material diferente, ao enchê-lo de água no filtro de casa, está sujeito a contaminação.

Como afirma Ítalo Braga de Castro, diretor do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), “a água do encanamento também tem microplásticos” . “As tubulações no mundo inteiro são de PVC, o policloreto de vinila, um polímero plástico”, observa o especialista.

A ciência caminha para compreender com exatidão o que os microplásticos causam no corpo de adultos, adolescentes, crianças e bebês. Estudos em animais e em células humanas em laboratório sugerem efeitos preocupantes, como processos inflamatórios, estresse oxidativo — desequilíbrio entre a produção de radicais livres e a capacidade do organismo de neutralizá-los — e danos a tecidos.

Os microplásticos já foram encontrados no sangue, no cérebro, no leite materno, nos cabelos, na saliva, no escarro, no mecônio, na safena, no intestino, na placenta, no baço, no pênis. A lista é imensa. Mas faltam trabalhos científicos conclusivos sobre as implicações disso nos seres humanos. “De fato, existem danos pelo contato e pela exposição a essas partículas, o que acende um alerta, mas ainda não sabemos qual a magnitude desse impacto”, analisa Queiroz.

Castro fala que as evidências disponíveis atualmente permitem fazer associações indiretas com doenças cardiovasculares, alterações endócrinas e problemas respiratórios e neurológicos, como Alzheimer e demência . Entretanto, não é possível afirmar que esses males sejam causados exclusivamente pelo microplástico. Para ele, o raciocínio é semelhante ao que se faz com o cigarro: embora não dê para provar que fumantes tiveram câncer de pulmão decorrente do fumo, estudos populacionais mostram essa correlação.

Se há dúvidas em relação às consequências do microplástico no corpo humano, o impacto ambiental já é bem documentado. Eles estão presentes nas praias, nos rios, no ar, nos oceanos e nos organismos marinhos. “Em Santos, por exemplo, o grupo de pesquisa do qual eu faço parte encontrou microplásticos em ostras e mariscos. É um dos maiores índices de contaminação do mundo . Mostramos recentemente que há microplástico em áreas brasileiras protegidas como Abrolhos, Fernando de Noronha, Parque Nacional de Jericoacoara e Ilha do Arvoredo”, relata Castro.

Esses fragmentos interferem na alimentação, na respiração e no desenvolvimento de diversas espécies, inclusive do fitoplâncton, que vive no mar e renova o oxigênio do planeta. “Essas algas que fazem esse serviço tão importante estão ameaçadas pela exposição ao microplástico, que é um problema muito mais sério do que o macroplástico. Isso porque ele se dissemina mais e atinge esses organismos que a população nem desconfia que existem, mas que precisamos muito deles para viver” , reforça o diretor do Instituto do Mar da Unifesp.

A persistência desses resíduos em todos os lugares também é alarmante. Mesmo que a humanidade parasse de produzir garrafinhas de água ou qualquer coisa de plástico agora, o que é impossível, os microplásticos ainda continuariam sendo formados por séculos. “Não há como remover essas partículas do ambiente. Não dá para filtrar rios ou oceanos”, conta o biólogo Lucas Gonçalves Queiroz.

“Toda ação tem um impacto ambiental, seja ele pequeno ou gigantesco. E, por mais que a gente tente mitigar isso, ainda assim vai haver um impacto. Não tem muito para onde correr, a realidade não é muito animadora, mas precisamos lidar com ela”, pondera.

É comum ver por aí campanhas que sugerem a substituição da garrafinha plástica descartável pela água de caixinha, ou de latinha, ou até mesmo pela adoção de recipientes reutilizáveis, como os de alumínio. Essa mudança é positiva, ninguém nega, mas tem seus limites. Para o professor Walter Ruggeri Waldman, da UFSCar, essa troca é um primeiro passo, entretanto, é preciso entender que a solução não está apenas no indivíduo.

A resposta, conforme o docente, precisa vir das políticas públicas e da regulação do mercado global do plástico. Ele lembra das fontes de toxicidade usadas para o plástico ganhar cor, textura, durabilidade e afins — tudo depende do que se quer produzir. E vários desses aditivos são tóxicos. “Por isso, é preciso produzir melhores plásticos, usando aditivos menos tóxicos, e fazer menos plásticos descartáveis e mais reusáveis.”

Além disso, Waldman fala que é fundamental que os produtores do setor abram para os consumidores quais são as substâncias adicionadas ao plástico. Uma saída similar à que a indústria alimentícia adotou há alguns anos, trazendo na embalagem todos os ingredientes utilizados.

Temos que mirar mais munição nas ações de governança e de regulação, e menos na questão do comportamento ou do consumo

Ítalo Braga de Castro concorda que não se pode responsabilizar somente quem consome produtos plásticos. Uma resolução real para a problemática exige que governos e empresas ofereçam alternativas viáveis e acessíveis. “Temos que mirar mais munição nas ações de governança e de regulação, e menos na questão do comportamento ou do consumo.”

“Por exemplo, o sushi que pedimos no delivery vem em uma embalagem bonita, bem-desenhada, bem-apresentada, e a jogamos no lixo assim que terminamos a refeição. Sabe por quê? Porque ela é barata [para o restaurante]. Então, é essencial encarecer esse material, só que, obviamente, colocando alternativas viáveis no lugar. Tudo isso se faz com substituição tributária”, recomenda. A mesma lógica pode ser usada para as garrafas de plástico.

Lucas Gonçalves Queiroz, da USP, questiona: “Se hoje a gente não consegue viver sem plástico, de que forma conseguimos utilizá-lo melhor?”. Ele reflete: “De uma forma mais consciente, utilizando menos ou tornando esses itens mais duráveis. Conscientizando a população, porque também não adianta o item ser durável e a pessoa simplesmente descartá-lo em pouco tempo. É uma cadeia de eventos e atores envolvidos em que todos precisam se comunicar para fazer a roda girar.

Existe uma moda de atacar tudo o que é acessível para oferecer salvações caríssimas, inacessíveis para grande parte da população

A influenciadora digital Mari Krüger acrescenta uma crítica importante ao elitismo nutricional que desconsidera as diversas realidades sociais e financeiras do Brasil. “Muitas vezes, as soluções apresentadas são caras, e quem não pode pagar vira o vilão. Já ouvi gente falando mal até de filtro de barro, um dos mais acessíveis para os brasileiros. Precisamos de acesso e informação, não de culpa.”

“Existe uma moda de atacar tudo o que é acessível para, no lugar, oferecer salvações milagrosas e caríssimas, inacessíveis para grande parte da população”, salienta.

Krüger acredita que deve haver um cuidado especial na comunicação com as pessoas. “É óbvio que reduzir dano sempre vai ser positivo, mas se você estiver na rua com muita sede, jamais deixe de beber água porque não quer tomar numa garrafinha plástica . Pense que isso vai acontecer às vezes.”

Ela pede ainda que quem não conseguir investir em uma garrafa de outro material, e só tiver a plástica à disposição, não deixe de se hidratar. “Isso, sim, é muito importante. O nosso corpo precisa de água para funcionar, a gente precisa de água potável, de água filtrada.”

De acordo com Krüger, em vez de fazer um “terrorismo do microplástico”, a sociedade em geral deveria focar em outras coisas. “Como a importância do saneamento básico e dos filtros de água”, finaliza.