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A fronteira da ciência contra o câncer com o desenvolvimento dos tratamentos com as Car-T-Cells (1 notícias)

Publicado em 30 de agosto de 2021

Por Carmino de Souza

Estamos em um momento de fronteira do conhecimento com a introdução dos tratamentos imunológicos que utilizam as células de derivação T (linfócitos-T) com receptores antigênicos quiméricos (Car-T-Cells). Podemos comparar este momento ao vivido nas décadas de 70 e 80 com a introdução e difusão dos transplantes de medula óssea (TMO), hoje consolidados e acessíveis no Brasil tanto no sistema público como privado de assistência à saúde. Os resultados clínicos com o TMO no Brasil são comparáveis ao do Primeiro Mundo e isto é resultado de planejamento e treinamento de profissionais especializados e compromissados com a especialidade e participação de instituições universitárias e de excelência na assistência à saúde.

A inovadora terapêutica com as Car-T-Cells tem demonstrado extraordinário potencial no tratamento de tumores hematológicos bem como em tumores sólidos. Os limites de sua utilização ainda não estão estabelecidos mas há grande entusiasmo em toda a comunidade científica com suas potencialidades1.

Os princípios técnicos envolvidos nesta terapêutica são compreensíveis aos pacientes e profissionais envolvidos, mas a sua operacionalização bem como o seu acesso e sustentação econômica ainda são bastante restritps. De maneira muito sumária, podemos descrever o procedimento da seguinte maneira: As Car-T-Cells são geradas a partir da coleta de leucócitos (glóbulos brancos) e seleção das células linfáticas de derivação T do próprio paciente através de procedimento de aférese (máquina que coleta o sangue total e separa os leucócitos do paciente). Estas células T são enviadas aos laboratórios de processamento e manipulação genética onde são reprogramadas para atingirem as células alvo tumorais do próprio paciente. Este processo é extraordinário, pois isola e ativa os linfócitos-T do paciente. As células são então modificadas por método de engenharia genética utilizando vetores virais que transportam os DNA das Car-T formando uma célula modificada e que tem atividade contra o tumor alvo do tratamento.

Em seguida, estas células são expandidas e devolvidas à origem para serem reinfundidas no próprio paciente, preparado clínica e imunologicamente para receber o procedimento. Todas essas etapas, logística, técnica e estrutural, são complexas e ainda extremamente onerosas.

Esta terapêutica está implantada em inúmeros países do Primeiro Mundo e milhares de procedimentos já foram realizados. No Brasil, grupos de pesquisadores têm trabalhado para ter o domínio das técnicas e estrutura necessárias à manipulação gênica.

Do ponto de vista da coleta dos leucócitos pelos métodos de aférese, da aplicação clínica e cuidado aos pacientes, tenho a convicção que estamos preparados nos centros que hoje já realizam os TMO. Entretanto, a logística de envio das células, manipulação, expansão e retorno ainda é inatingível a quase totalidade de nossa população. As entidades que representam a especialidade têm promovido inúmeros eventos e travado grandes e importantes discussões no sentido de avaliar e viabilizar a introdução do procedimento no Brasil de forma a mais equânime possível tanto no sistema público como privado.

Os especialistas brasileiros oriundos de universidades, institutos de pesquisa, grandes hospitais de referência etc., com forte apoio da comunidade científica internacional e agências de fomento como a Fapesp, juntamente com representantes do Ministério da Saúde, Anvisa, entes federados e casas farmacêuticas, têm buscado construir consensos que harmonizem aspectos ligados ao manejo, regulação, acesso e finalmente, as indicações mais habituais e consolidadas desta terapêutica2.

Aspectos legais e éticos também são fundamentais neste processo e estão sendo considerados, discutidos e ajustados. Grupos de especialistas têm trabalhado incessantemente para produzir conteúdo de caráter estratégico, científico, regulatório dentre outros, e com isto dar sustentação às decisões de políticas públicas fundamentais ao tema. Este não é e não será um processo fácil, rápido ou barato. Temos a expectativa de que poderá levar alguns anos até que se implante definitivamente no País. Exigirá que decisões sejam tomadas e que possam ser as mais democráticas, tecnicamente sustentáveis e com maior probabilidade de êxito. Alguns procedimentos terapêuticos, ainda em ambiente de pesquisas, já foram feitos no Brasil mostrando a factibilidade deste tratamento.

Eu, pessoalmente, estou muito entusiasmado com este momento e todo o processo de discussão e de implantação no Brasil.

Vejo que há um enorme compromisso com a qualidade e segurança buscando os caminhos que possam garantir a sustentabilidade econômica e assistencial deste processo. As mais importantes instituições de ensino, pesquisa e inovação do País estão juntas na busca dos caminhos que possam viabilizar a introdução desta nova modalidade de tratamento do câncer e doenças genéticas no Brasil.

Em Campinas, tanto a Unicamp, através de suas unidades de saúde bem, como o Centro Infantil Boldrini estão engajados neste projeto. Sabemos que um projeto desta dimensão exigirá entendimento e investimentos por parte dos órgãos de fomento à pesquisa e dos poderes públicos. Exigirá ainda que a Anvisa seja participante e pró-ativa para promover as orientações e ações regulatórias que facilitem este processo. Enfim, temos uma extraordinária fronteira da medicina em desenvolvimento e implantação. Vamos todos com seriedade e dedicação tentar trazer o quanto antes esta modalidade de tratamento ao nosso País.

1 – June CH and Sadelain M: Chimeric Antigen Receptor Therapy (Frontiers in Medicine – review article). N Engl J Med 2018; 379:64-73. DOI: 10.1056/NEJMra 1706169  

2 – Editorial: The Brazilian Association of Hematology, Hemotherapy and Cellular Therapy seeks the implementation of, and access to, the CAR-T cell treatment in Brazil. Hematology Transfusion and Cell Therapy (ahead of print – 2021) https://doi.org/10.1016/j.htct.2021.07.001

Carmino Antonio de Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020