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Jornal do Brasil

A física moderna sob o olhar de Heisenberg - Autor conta por que Alemanha não fez bomba atômica

Publicado em 19 agosto 1996

Por ALICIA IVANISSEVICH
Por que um país como a Alemanha — onde se formaram alguns dos mais importantes cientistas do século, como Max Planck, Albert Einstein, Wolfgang Pauli, Max Bom e Werner Heisenberg, — não conseguiu fazer a bomba atômica apesar do esforço alemão durante a Segunda Guerra para dominar a energia nuclear? Apenas por uma questão de engenharia. Apesar de dominar as bases teóricas da fissão do átomo, a Alemanha não conseguiu superar os entraves técnicos a tempo. "Felizmente", diz Heisenberg (1901-1976) em seu livro autobiográfico A parte e o lodo, cuja versão inédita em português, da Editora Contraponto, chega às livrarias do país esta semana. Em A parte e o todo, Heisenberg conta como a física atômica se desenvolveu durante cinco décadas. Longe de ser uma coletânea de lembranças, o livro é cheio de relatos interessantes que ajudam a construir a história da física moderna. Questões não apenas científicas, mas éticas, filosóficas e políticas são abordadas nas conversas que o autor manteve com personalidades como Einstein, Pauli e o físico dinamarquês Niels Bohr. Heisenberg começa sua autobiografia falando de seu primeiro encontro com a física atômica. Em 1920, adoece gravemente e aproveita sua longa convalescença para ler obras que o fascinam. Entre elas, destaca-se Espaço, tempo e matéria, do matemático alemão Hermann Weyl sobre a teoria da relatividade de Einstein. Define então sua vocação: procura o professor Ferdinand von Lindemann para estudar matemática na Universidade de Munique, onde seu pai lecionava grego médio e moderno. Mas o primeiro contato com Lindemann foi frustrante. Heisenberg foi recebido por um cão preto que não parou de latir durante esse breve encontro. Após mencionar seu interesse pela teoria de Einstein, Lindemann encerrou a conversa: "Você está completamente perdido para a matemática". Talvez tenha sido o cão de Lindemann e um encontro posterior — mais afável — com o físico ale-mão Arnold Sommerfeld que levaram Heisenberg a se decidir pelo estudo da física. Uma palestra de Niels Bohr em Göttingen e uma conversa com o físico dinamarquês, em 1922, também repercutiriam profundamente na formação de Heisenberg. "Talvez seja mais correto dizer que minha carreira científica começou naquela tarde", escreve o autor. O contato com Bohr se tornaria mais estreito a partir de 1924, quando foi trabalhar com ele na Dinamarca. Começava a se esboçar então a mecânica quântica, teoria que descreve o comportamento do microuniverso dos átomos. É nessa época também que mantém sua primeira conversa com Einstein em Berlim, que descreve, em forma de diálogo, com riqueza de detalhes no livro. Seria a partir dessa e outras discussões que teve com Bohr e o físico austríaco Erwin Schrödinger que surgiria um dos principais questionamentos que levariam Heisenberg a elaborar o princípio da incerteza, que o tornaria famoso — em 1932, com 31 anos, recebe o Nobel de Física por seu trabalho sobre a chamada mecânica matricial, elaborado quando tinha apenas 24. A teoria defendida por Heisenberg tinha a adesão de Bohr, que elaborara o conceito — mais abrangente— da complementaridade. Em 1927, começava a se delinear o que seriam duas escolas na Física: uma liderada por Einstein e a outra por Bohr, a Escola de Copenhague. Durante os anos seguintes, como professor da Universidade de Leipzig, Heisenberg convive com jovens de diversos países, com os quais mantém conversas enriquecedoras. Mas a época dourada da física atômica chegava ao fim. Crescia a inquietação política na Alemanha e a tensão aumentava também dentro da universidade. Aproximava-se a hora de o físico alemão optar entre deixar seu país, como a maioria de seus colegas — Einstein e Pauli haviam emigrado para os Estados Unidos e Bom, para a Inglaterra — ou permanecer na Alemanha, onde a ascensão do nazismo era certa. Uma conversa com Planck será decisiva nessa escolha. Convencido de que seria mais útil para seu país ao formar gente jovem "para ajudá-la a construir um mundo novo e melhor depois da catástrofe", Heisenberg resolve ficar em Leipzig. Apesar da convulsão que a ascensão de Hitler causou na vida científica dentro e fora do país, a física atômica desenvolveu-se com assombrosa rapidez. Em fins de 1938, Otto Hahn, na Alemanha, realizava a primeira fissão do átomo de urânio, abrindo espaço para uma nova e poderosa fonte de energia, que poderia ser usada para fins bélicos ou pacíficos. Os anos anteriores à guerra seriam para Heisenberg "um período de indizível solidão". Mas sua convicção de formar jovens talentos e sua "fantasia otimista" — como ele mesmo define — de que a Alemanha não tinha potencial técnico para desenvolver a bomba o fizeram permanecer no país. Heisenberg seria perseguido pelos nazistas por se recusar a rejeitar as idéias de Einstein. Sua punição foi perder a chance de suceder Sommerfeld na Universidade de Munique. Em 4 de maio de 1945, Heisenberg foi preso por um pequeno destacamento americano. "Senti-me como um nadador completamente exausto que pisasse em terra firme", comenta o físico. Na prisão, encontraria outros nove físicos. Lá receberia a notícia de que a bomba atômica fora lançada sobre Hiroshima. "Tive que aceitar o fato de que o progresso da física atômica, do qual eu participara por 25 longos anos, havia acabado de levar à morte mais de 100 mil pessoas". Acabada a guerra, Heisenberg ajudou a construir o Instituto Max Planck em Göttingen, do qual se tornaria diretor — depois da mudança para Munique — em 1958. Lá veria uma nova geração de físicos trabalhar em problemas que muito o motivaram: as partículas elementares.