Terá sido por compreensível desconhecimento de algumas decisões históricas tomadas pelo Estado de São Paulo, em relação à educação, à cultura e à ciência, por um zelo louvável quanto ao destino das verbas públicas, por um cochilo na leitura das leis, talvez por uma combinação entre os três fatores, que o secretário da Fazenda de São Paulo, Yoshiaki Nakano, classificou de "inconstitucionais" os repasses do Tesouro Estadual para a Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). São repasses, observe-se, previstos exatamente na Constituição Estadual de 1989, artigo 271, Capítulo IV, referente à ciência e tecnologia.
A absoluta contradição nos termos praticada pelo secretário está em reportagem publicada pela Gazeta Mercantil de 21 de março último, em que ele analisa a situação financeira do estado e os "três principais fatores que estrangulam São Paulo". Entre esses fatores estariam as transferências obrigatórias à Fapesp e às três universidades estaduais paulistas. Para estas últimas, em 1995, o Tesouro transferiu cerca de R$ 1,2 bilhão, equivalente a 9,579?- da arrecadação líquida do ICMS, cumprindo o disposto em decreto estadual. Para a Fapesp transferiu R$ 140 milhões, equivalentes a 1% da arrecadação líquida do mesmo ICMS, obedecendo ao dispositivo constitucional.
Queremos nos deter aqui na citação à Fapesp, uma vez que sobre o conjunto das referidas transferências, e particularmente sobre o seu significado no desenvolvimento sócio-econômico de São Paulo, o secretário da Ciência e Tecnologia e Desenvolvimento Econômico, Emerson Kapaz, já se manifestou, recolocando a questão em seus termos justos, em reportagem publicada na Gazeta Mercantil de 25 de março.
Primeiramente, valeria a pena que o secretário Yoshiaki Nakano refletisse sobre as motivações que levaram os constituintes da Carta Estadual de 1947 a estabelecerem seu Artigo 123: "O amparo à pesquisa científica será propiciado pelo Estado, por intermédio de uma fundação organizada em moldes a serem estabelecidos por lei". E ainda: "Anualmente, o Estado atribuirá a essa fundação, como renda especial de sua privativa administração, a quantia não inferior a meio por cento do total de sua receita ordinária".
Vivia-se, então, um processo de redemocratização do País, portanto, um momento de repensá-lo e, no mundo do pós-guerra começava a se aprofundar a consciência de que o investimento em ciência e tecnologia, ao lado do investimento em educação, é uma das formas mais eficazes de estimular e induzir o desenvolvimento. Por razões de formação histórica, econômica e cultural, São Paulo revelou condições de absorver, muito mais rápida e conseqüentemente do que outros estados brasileiros, os novos conceitos de desenvolvimento em circulação.
Concluídos os longos e necessários debates parlamentares e acadêmicos sobre a fundação prevista na Constituição de 1947, a Fapesp foi instalada com base na Lei Orgânica 5.918 de 18 de outubro de 1960. Dotada de um caráter inequivocamente avançado, em termos políticos, a lei determinara em seu Artigo 3º que essa fundação formasse um patrimônio rentável, para que pudesse efetivamente apoiar, com a soma das transferências do Tesouro e de suas rendas próprias, a atividade científica, a formação e o aperfeiçoamento de pesquisadores em São Paulo.
A formação desse patrimônio foi facilitada pela decisão do governador Carlos Alberto Alves de Carvalho Pinto de transferir, à nova fundação, a dotação correspondente ao período 1956-1960, num total equivalente a US$ 5,7 milhões. A partir daí, administrado com reconhecida eficiência e probidade (tanto que as despesas da Fapesp com custeio, pagas com recursos próprios, têm permanecido no limite de até 1% de seu orçamento global), esse patrimônio tem crescido regularmente.
No entanto, bem mais que o patrimônio, tem crescido ano após ano a fundamental contribuição da Fapesp para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia em São Paulo. E, dada a indissolubilidade do vínculo contemporâneo entre desenvolvimento científico e tecnológico e desenvolvimento econômico, é quase ocioso discutir a contribuição da Fapesp para o estágio de desenvolvimento que a economia paulista alcançou - a despeito dos estrangulamentos sentidos na atual conjuntura e cujas razões, numa busca sincera, devem ser procuradas em sítio bem distante dessa fundação.
Como bem observou o presidente do Conselho Superior da Fapesp, professor Francisco Romeu Landi, em carta enviada por estes dias ao secretário Yoshiaki Nakano, "a ferrugem do café, o cancro cítrico, as pragas da banana, o desenvolvimento de equipamentos do Incor para salvar vidas humanas, o aprimoramento da saúde pública, o aumento da produtividade da cana-de-açúcar, o desenvolvimento de aeronaves, o aprimoramento de matrizes para aviários, o aumento de produtividade dos aviários, a piscicultura, a melhoria genética do rebanho paulista e brasileiro, a inovação tecnológica, etc, foram temas de pesquisa que resultaram em aumento do ICMS". E foram todas elas pesquisas viabilizadas pelo apoio decisivo da Fapesp.
Foi certamente olhando para essa folha de serviços e para novos desafios do desenvolvimento que os constituintes da Carta Estadual de 1989 elevaram as transferências obrigatórias do Tesouro para a Fapesp, de 0,5 para 1% da arrecadação líquida do ICMS. Coincidentemente, o País vivia um novo processo de redemocratização e, no mundo, aprofundava-se a consciência de que estamos vivendo a terceira revolução industrial, baseada no conhecimento.
A Fapesp recebeu, assim, em 1995, R$ 140 milhões. E destinou ao desenvolvimento científico e tecnológico deste estado R$ 223,5 milhões - R$ 24.7 milhões para bolsas de estudos, R$ 48,8 milhões para auxílios à pesquisa, R$ 140 milhões para projetos de recuperação e modernização da infra-estrutura de pesquisa do estado e R$ 10 milhões para projetos de inovação tecnológica feitos em parceria, por empresas e instituições de pesquisa.
Talvez faça bem ao debate, mais que enumerar aqui recentes e gratificantes referências internacionais à notável eficiência da Fapesp, voltar ao passado e lembrar um testemunho do governador Carvalho Pinto, em cuja gestão essa fundação começou a funcionar. "Se me fosse dado destacar alguma das realizações da minha despretensiosa vida pública" disse ele, "não hesitaria em eleger a Fapesp como uma das mais significativas para o desenvolvimento econômico, social e cultural do País."
Retornando a tempos mais próximos, vale lembrar que todos os governadores de São Paulo, desde Franco Montoro, reafirmaram a importância atribuída à Fapesp, tanto que sempre transferiram rigorosamente à instituição os recursos previstos na Constituição. Causa preocupação, é claro, a existência de visões diferentes dentro do atual governo, mas a torna menor a possibilidade de estender o mesmo comentário ao governador Mário Covas - que, conforme manifestação do secretário Emerson Kapaz, não pensa como o secretário Yoshiaki Nakano.
* Diretor-presidente da Fapesp e professor titular de Física aposentado pala Unicamp. Foi diretor-geral do instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, INPE, da Embraer e secretário de Tecnologia do Ministério da Indústria e Comércio.
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Gazeta Mercantil