Charles Darwin publicou "A Origem das Espécies" em 1859 e "The Descent of Man" (A Ascendência do Homem) em 1871. Ainda no século XIX apareceram as primeiras tentativas de aplicar os princípios darwinistas às sociedades humanas. Eram obras de antropólogos que procuravam classificar os povos e as culturas numa escala qualitativa. Na Inglaterra e na França, ambas metrópoles de extensos impérios africanos, esses livros costumavam chegar à conclusão de que os brancos eram "superiores" aos negros; na Alemanha, cujas ambições imperiais priorizavam os lugares mais perto de casa, os pesquisadores costumavam descobrir uma relação de "superioridade" entre os povos germânicos e eslavos.
Com a derrota da Alemanha nazista em 1945, essas ideologias racistas, rotuladas de "darwinismo social", caíram em merecido descrédito. Mas nos últimos vinte a trinta anos, vários cientistas - geralmente, biólogos ou psicólogos - retornaram às idéias darwinistas, numa tentativa de analisar e explicar o comportamento humano à luz das descobertas da genética. São esses trabalhos que o jornalista americano Robert Wright sintetiza em "O Animal Moral", sucesso de vendas nos Estados Unidos quando foi lançado há dois anos.
Wright cumpre honrosamente a tarefa de resgatar o "darwinismo social" - que atende, hoje, por diversos outros nomes como "sociobiologia", "psicologia evolucionista" e "eco-behavorismo" - da pecha de ter servido, no passado, de justificativa intelectual para racismos, supremacismos e genocídios diversos. No entanto, o comportamento humano é um assunto impossível de se tratar sem causar ofensa, real ou suposta, a alguém. Nos Estados Unidos ainda se ensina, nas escolas públicas, o "criacionismo"' - a história da humanidade de estrito acordo com o livro de Gênesis - como "ciência". Já é um primeiro foco de oposição a qualquer idéia que se rotule de darwinista ou evolucionista. E Wright ainda sofreu ataques de feministas por se referir, em termos de aprovação, a livros como "Sociobiologia", de Edward O. Wilson, condenado nos anos 70 por sugerir que a genética é capaz de explicar certas diferenças entre o comportamento do homem e da mulher.
Os novos evolucionistas partem do pressuposto de que há genes que exercem alguma influência sobre o comportamento e que, ao longo das 100 mil a 200 mil gerações que nos separam dos nossos antepassados australopitecídeos, alguns genes foram de maior utilidade do que outros, ajudando-nos a sobreviver e, dessa forma, ajudando-se a si próprios a se perpetuar.
Os genes passam de geração a geração pela reprodução sexual - não a deles, mas a nossa. Aí Wright já está pisando num campo minado, em que polêmicas começam a pipocar pela simples ênfase que se dá a este ou aquele aspecto da sexualidade.
Numa área aparentemente inocente como o dimorfismo sexual - o contraste entre o tamanho do corpo do macho e da fêmea da mesma espécie -, Wright observa que "somos muito menos dimórficos do que os gorilas, um pouco menos do que os chimpanzés e muito mais do que os gibões". Apesar dos 137 anos que se passaram desde a publicação de "A Origem das Espécies", uma justaposição como essa ainda soa ofensiva nos ouvidos de alguns.
Em todas as espécies mamíferas, os genes com as melhores chances de se perpetuarem de geração em geração não são necessariamente os mesmos no macho e na fêmea. Entre os genes que têm a ver com o comportamento humano, há alguns que influenciam a maneira em que formamos e mantemos pares, e em que criamos nossos filhos (os veículos da perpetuação dos genes). Na manutenção do par, o ciúme é um dos fatores em jogo. Num trecho ofensivo a algumas feministas, Wright escreve: "O ciúme masculino deveria se centrar na infidelidade sexual, que os machos teriam dificuldades em perdoar; a mulher, embora não aplauda as atividades extracurriculares do parceiro, pois consomem tempo e desviam recursos, estaria mais preocupada com a infidelidade emocional - a espécie de compromisso magnético com outra mulher que poderia, com o tempo, redundar em um desvio muito maior de recursos".
Wright teve o cuidado de escrever um livro acessível aos leigos, de leitura amena e condimentada por uma série de comparações entre o comportamento humano que seria de se esperar, de acordo com a teoria evolucionista, e o comportamento na vida real do próprio Darwin: suas relações com os pais, quando jovem, seus primeiros namoros, seu casamento, sua convivência com os filhos.
A tradução de Lia Wyler reproduz com fieldade o estilo leve e espirituoso do original. Um ou outro lapso é quase inevitável - o advérbio "exceedingly", que significa "imensamente" ou "enormemente", é traduzido como "excessivamente", o que substitui a conotação de admiração por uma de quase repreensão e, num momento de hesitação entre "convergir" e "divergir", a tradutora criou o instigante neologismo "condivergir".
Mas o lapso talvez tenha sido da revisão, não da tradução, como também deve ser o caso com um erro mais irritante, por se repetir algumas centenas de vezes ao longo do livro. Em vez de "poliginia" e "polígino" - que denotam, tecnicamente, aquilo que comumente chamamos de poligamia (o elemento "gin", mulher, é o mesmo de "ginecologia") - aparecem, invariavelmente, "poligenia" e "poligênico". Desaparece a mulher, cedendo o lugar a um simples gene. Darwin explica?
Notícia
Gazeta Mercantil