A crítica atual à universidade pública brasileira enfatiza que é irreal esperar que todas alcancem o grau de organização acadêmica e administrativa necessário a uma produção científica e tecnológica relevante e competitiva. Em favor desta conclusão, argumenta-se que, nos países onde a pesquisa acadêmica é importante, uma minoria do total de universidades responde pela produção científica universitária. Estas instituições são as chamadas universidades de pesquisa que estão em torno de 150 nos EUA, 20 no Reino Unido e 10 no Canadá. A partir desta linha de raciocínio, recomenda-se o abandono do modelo único de universidade consagrado na Constituição brasileira e propõe-se a adoção de duas categorias de instituição: universidade de ensino e universidade de pesquisa. Há simplismos e ambigüidades nesta análise e consequentemente na receita proposta. Primeiro, não é verdade que pesquisa relevante e de boa qualidade só pode ser feita em universidade intensivamente comprometida com pesquisa, isto é, numa universidade de pesquisa. Segundo, uma das principais finalidades da universidade de pesquisa continua sendo o ensino, particularmente, a pós-graduação. Terceiro, a prática da pesquisa e, em qualquer tipo de instituição, o melhor meio para garantir um ensino atualizado e de boa qualidade.
Nos EUA, as Universidades de Wisconsin, de Washington e da Califórnia são públicas, já as Universidades de Stanford, de Cornell e MIT são privadas, mas todas são exemplos de universidades de pesquisa de grande porte. Seus respectivos orçamentos de pesquisa não se distinguem quanto à composição e natureza dos recursos: 74 a 83% são recursos públicos: uma parcela muito menor, 3 a 16%, vem da empresa privada: outra parcela também pequena mas estratégica, 3 a 13%, origina-se de fontes próprias. É oportuno fazer dois destaques. Primeiro, a pesquisa acadêmica só se desenvolve se for custeada com dinheiro público. Segundo, bons resultados, a médio e longo prazo, só são conseguidos quando o dinheiro público é investido através de processos abertos e competitivos, que julgam a qualidade e a relevância científica de projetos de pesquisa concorrentes. A história de sucesso das universidades de pesquisa nos EUA apóia amplamente estas afirmativas.
A organização acadêmica da universidade de pesquisa americana tem como unidade básica o grupo de pesquisa, composto por um professor líder de ensino e pesquisa e seus alunos de iniciação científica e pós-graduação e seus associados de pós-doutoramento. São os grupos de pesquisa que geram os projetos, através dos quais compelem por recursos financeiros fora da universidade. Por outro lado, a universidade possui uma estrutura corporativa que enfatiza a eficiência administrativa e, academicamente, impõe uma organização supra grupos de pesquisa garantindo coordenação e sinergia entre objetivos de pesquisa e ensino para cumprir missões que a universidade prioriza e que são relevantes para a sociedade. O prestígio institucional, a capacidade de reter professores de alto desempenho acadêmico e a facilidade em conseguir recursos externos depende da eficiência da universidade de antecipar necessidades e atender demandas importantes da sociedade. Tudo isto é válido tanto para a universidade de pesquisa pública como para a privada, na verdade, ambas são instituições de relevância social, sem fins lucrativos.
As atuais universidades de pesquisa dos EUA organizaram-se da expansão recente de universidades antigas e de alta qualidade acadêmica. Esta expansão veio do enorme e progressivo investimento federal iniciado após a 2ª Guerra Mundial e resultante do conhecido relatório de V. Bush ao governo americano em 1945, intitulado "Science the endless frontier", que deu origem à National Science Foundation (NSF). Atualmente, 80% do investimento total dos EUA em P & D universitário está concentrado em apenas 100 das 3.600 instituições de ensino superior americanas classificadas pela Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching em 1987. O modelo americano de expansão sustentada do investimento na pesquisa acadêmica já não existe mais e sua revisão gera hoje uma crise complexa e de proporções ainda indefinidas, mas que não cabe examinar neste artigo.
Entre nós, financiamento de pesquisa com recursos públicos, por processo competitivo e atendimento direto ao professor-pesquisador começou no Governo Federal após a criação do CNPq, apenas alguns anos depois do NSF nos EUA. Por outro lado, a Fapesp, ao longo de mais de 3 décadas, aprimorou o melhor sistema do País para analisar e qualificar projetos para fins de concessão de auxílio à pesquisa.
No Brasil, sabidamente, a maior parte dos pesquisadores bem qualificados estão nas universidades públicas, fazendo destas instituições importantes centros para produção da pesquisa científica necessária ao desenvolvimento nacional. O CNPq possui, atualmente, um bom cadastro dos grupos de pesquisa brasileiros, 41% dos quais estão concentrados em apenas cinco universidades. São as três universidades estaduais de São Paulo, USP, Unicamp e Unesp e duas das mais tradicionais universidades federais. Estas universidades, pelo porte que já possuem, poderiam evoluir para um modelo estrutural de universidade de pesquisa apropriado as condições e necessidades do País.
Nos últimos dez anos, no Estado de São Paulo, combinaram-se fatores que sinergicamente estão favorecendo a evolução progressiva de um modelo de universidade de pesquisa: a) disponibilidade de recursos suficientes do sistema federal (CNPq e Capes) na forma de bolsas de IC, PG, PD e Pesquisa: b) aumento expressivo da capacidade de financiamento da Fapesp e c) adoção pelo governo do Estado da autonomia para as Universidades Estaduais Paulistas. Os dados dos últimos 11 anos de auxílios a projetos de pesquisa contratados pela Fapesp permitem fazer um estudo interessante sobre a evolução recente das universidades do Estado, identificando os fatores limitantes no progresso dessas instituições.
O gráfico 1 mostra a evolução do numero de projetos de pesquisa contratados com as universidades públicas do Estado de São Paulo pela Fapesp. A média de recursos por projeto aumentou 4,6 vezes no Estado e 4,7 vezes na USP, entre 85 e 95 (gráficos I e 2). Embora recursos por projeto tenha aumentado significativamente, o número de projetos aprovados cresceu pouco (gráficos 1e 2). A explicação para este fato não é que a população de pesquisadores do Estado, ou da USP, já esteja toda atendida pela Fapesp. Pelo contrário, a fração de pesquisadores que se consolidou como clientes qualificados da Fapesp é ainda pequena tanto no Estado, como na USP.
O gráfico 3 mostra que o índice de projetos contratados pela Fapesp por docente varia bastante entre as Unidades da USP. Apenas 8 Unidades alcançaram, pelo menos, 1,5 projetos/docente, um índice baixo para um período de 11 anos. A tabela 2 traz informações complementares: dos 987 grupas de pesquisa da USP cadastradas em 1993, 688 reaparecem no registro de 1995, destes somente 260 contrataram, pelo menos, 2 projetos na Fapesp nos 10 anos anteriores ao último cadastramento. Portanto, os dados do gráfico 3 e da tabela 2 deixam evidente que há amplas possibilidades de crescimento do número de projetos da FAPESP contratados na USP. A Unicamp e a Unesp, que contam, respectivamente, com 659 e 405 grupos de pesquisa cadastrados no CNPq (tabela 1), tem situação semelhante à USP no concernente à qualificação de projetos de pesquisa na Fapesp. Logo, é forçoso concluir que as Universidades tem sido lentas na resposta ao aumento recente da oferta de recursos competitivos, para o financiamento da pesquisa acadêmica, no Estado de São Paulo.
O programa de auxílios a projetos de pesquisa tradicional da Fapesp se destina ao pesquisador individual, independentemente do seu estágio na carreira, são elegíveis tanto pesquisadores recém-titulados como os já consagrados. A única exigência é um projeto de pesquisa de boa qualidade. A Universidade incentivar (talvez devesse exigir) os professores a apresentar projetos à Fapesp não é apenas para obter recursos extra-orçamentários, é, também, para ter a qualidade acadêmica dos seus docentes avaliada em instâncias externas. Um alto índice de aprovação de projetos de pesquisa é muito importante para manter um elevado padrão científico e garantir um ensino atualizado de boa qualidade. No entanto, projetos de pesquisa isolados, de pequeno porte e curta duração não são suficientes para fazer da instituição uma universidade de pesquisa.
Na década de 90, a Fapesp introduziu uma nova modalidade de financiamento à pesquisa de maior alcance, através dos Projetos Temáticos. Estes são plurianuais, 4 anos; destinam-se a grupos de pesquisa consolidados, cujos projetos têm objetivos de médio e longo prazo e dependem de recursos relativamente altos e financiamento contínuo e duradouro. As instituições com organização acadêmica mais complexa, à semelhança de uma universidade de pesquisa, têm mais probabilidade de contar com grupos de pesquisa preparados para competir por Projetos Temáticos.
O gráfico 4 mostra a evolução do número total de Projetos Temáticos da Fapesp em andamento por ano: começou em 91 com 72, aumentando continuamente até cerca de 150, em 94: em 95 tende a cair. O número máximo atingido, 151, é relativamente pequeno, mas, não se deve à falta de recursos. A limitação está no número relativamente restrito, no Estado, de grupos de pesquisa suficientemente desenvolvidos para gerar e executar projetos de maior envergadura. Este fato é bem evidenciado quando se observa a evolução do número de Projetos Temáticos na USP por ano de contratação (gráfico 5): inicia-se com 42 em 91, que logo cai para um patamar de 15 por ano. Volta a subir em 96, mas deve-se ressaltar que apenas 11 dos 42 projetos iniciais de 91 foram renovados até esta data.
Sem dúvida, um baixo grau de renovação considerando-se que são projetos de grupos de pesquisa dos mais profissionais e competitivos, cujas atividades não podem ser interrompidas. Apesar destas ressalvas, a USP tem sido majoritária, detendo cerca de 60% de todos os Projetos Temáticos contratados no Estado. Mas, este sucesso relativo deve ser olhado com sobriedade, trata-se de desempenho ainda modesto quando se leva em conta, por um lado, o grande número de grupos de pesquisa e cursos de doutoramento da USP, e, por outro, a grande oferta de recursos na Fapesp nos últimos anos.
A novidade recente, em fundos públicos para pesquisa, foi o governo Federal, em 1996, lançar o Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (Pronex), com a finalidade de se transformar num sistema brasileiro de financiamento competitivo de projetos plurianuais, com objetivos de médio e longo prazo, com focos temáticos definidos e propostos por grupos de pesquisa bem estabelecidos. A primeira rodada do Pronex foi muito concorrida: 451 projetos foram submetidos e somente 77, isto é, 17,1% foram selecionados (tabela 3). A maioria dos projetos reúnem grupos de pesquisa de múltiplas instituições. Mas, tomando-se como referência a sede institucional da coordenação dos projetos, verifica-se que 40% dos projetos foram contratados no Estado de São Paulo, tendo a USP à frente com 15 projetos (tabela 3).
É interessante notar que o volume de recursos contratados na primeira rodada do Pronex é relativamente modesto (tabela 3). Mas a criação do Pronex vem atender uma aspiração antiga da comunidade científica brasileira, um novo edital para 97 acaba de ser publicado, etapa que permitirá aprimoramento do Programa que precisa se estabelecer e ganhar credibilidade. O Pronex ambiciona ocupar, em nível nacional, a posição de um sistema federal confiável de financiamento competitivo da pesquisa científica e tecnológica, podendo se tornar num novo indutor do desenvolvimento das universidades de pesquisa.
Programas como o de Projetos Temáticos da Fapesp e o Pronex, incentivam as instituições a adquirirem uma organização acadêmica e administrativa própria de uma universidade de pesquisa. Mas, a universidade pública brasileira mais comum se caracteriza por uma organização acadêmica de recorte disciplinar, moldado pelo conjunto de disciplinas tradicionais dos currículos escolares da graduação. Por outro lado, a área administrativa está, em geral, estruturada para atendimento a uma escola (secretarias de ensino, expedientes de colegiados, etc.) e não a um centro de pesquisa, que exige agilidade gerencial (setores de compras, administração de convênios, importação, etc.) para responder ao dinamismo de grupos de pesquisa, que são unidades empreendedoras comprometidas com metas e cronogramas rigidamente estabelecidos. Universidades com organização tradicional tem uma inércia muito grande para promover as mudanças estruturais que programas como o de Projetos Temáticos e Pronex buscam estimular. Nestas circunstâncias, estes programas podem ter apenas efeitos desagregadores sobre instituições, que tem sido bons centros de ensino superior com atividades de pesquisa relevantes apoiados pelos tradicionais programas de balcão do CNPq e das FAPEs, mas que não tem cultura e nem vocação para se transformar numa universidade de pesquisa.
Neste momento, pode-se dizer que no Estado de São Paulo a principal limitação para o progresso da pesquisa não são recursos financeiros. Está faltando uma ação mais objetiva das universidades, buscando, cada uma, a evolução que melhor lhes cabe, tendo em mente com muita clareza, que do ponto de vista da sociedade e do País, a universidade de pesquisa não tem maior valor intrínseco que a universidade que faz pesquisa para manter sua boa qualidade acadêmica, mas prioriza o ensino.
A USP foi fundada com vocação para ser uma universidade de pesquisa e, nesta condição, cumpriu muito bem o papel de instituição pioneira no ensino superior brasileiro. Mas, as dificuldades atuais do ensino superior brasileiro para enfrentar os novos e crescentes desafios colocados pela urgência em compatibilizar desenvolvimento social com competitividade econômica num mercado globalizado, põe para a USP exigências adicionais. Neste momento, espera-se que a USP lidere a transformação da universidade brasileira, buscando um modelo de estrutura acadêmica e administrativa apropriado a uma universidade de pesquisa, capaz de interagir colaborativa e competitivamente com suas congêneres dos países desenvolvidos.
Nos últimos três anos, a Pró-Reitoria de Pesquisa tomou algumas iniciativas que considerou estratégicas. Deu ênfase à qualificação de projetos de pesquisa fora da Universidade, tendo como objetivo imediato, aproveitar a disponibilidade de recursos na Fapesp, mas sem prejuízo de uma presença forte e competitiva da USP em Iodos os programas federais. Procurou desenhar incentivos diferenciados para os setores acadêmicos bem estabelecidos e para os mais incipientes em pesquisa. Neste ano é necessário avaliar os resultados e transformar as iniciativas acertadas em compromissos tia Universidade. A instituição precisa de políticas de longo prazo que sobrevivam a dificuldades conjunturais episódicas.
Hugo A. Armelin - Pró-Reitor de Pesquisa
Notícia
Jornal da USP