O artista abre o portão do ateliê com um sorriso de orelha a orelha. As últimas semanas têm sido compensadoras. Professores, curadores, críticos e jornalistas interessados em sua enciclopédia têm acorrido, em silenciosa peregrinação, à sala branca de 9 metros quadrados em São Paulo, alugada há 18 meses para parir a obra. Sobre a mesa arrumada à perfeição repousa o volume com 311 obras e 50 biografias de artistas. “Tudo inventado”, esclarece Bruno Moreschi. Qual uma obra borgiana, crivada por discursos sobre o real e o fantástico, o compêndio representa, na opinião de alguns críticos e dele mesmo (se não como manifesto, como paródia), a crise atual da arte contemporânea.
Não que Moreschi se veja como um Quixote das artes visuais ou “a nova promessa da arte conceitual brasileira”, como lhe sugeriram quando passou a mostrar os rascunhos da enciclopédia. ART BOOK é apenas a decantação de sua trajetória no tortuoso mundo das artes, território minado (e superlotado), no qual as críticas ao sistema e a adesão completa às vendas para madames em galerias cheirando a perfume dividem displicentemente o mesmo espaço, assim como realidade e ficção nas obras e biografias do compêndio. Mas como crer na narrativa autobiográfica de um artista que inventa artistas?
Nascido em Maringá, Moreschi aportou em São Paulo logo após se formarjornalista. Cobriu até o desastre aéreo da TAM, em 2007, que matou 199 pessoas. “Tudo era incrível”, lembra. Mas o papel não comportava a imaginação. “As regras do jornalismo obrigam a escrever a verdade. E eu queria criar.” Publicou um texto com a entrevista feita por e-mail com o polêmico Matthew Barney. Outros perfis de artistas e resenhas ganharam sua assinatura. Virou jornalista de artes. Mas seu lugar ainda era outro. “Eu entrevistava tanto artista que aos 20 e poucos anos já tinha sua ‘questão’ definida... um deles pintava só quadros sobre o céu. Era seu ‘horizonte conceitual’, dizia. Ia morrer pintando céu, entende?” Visionário, Moreschi decidiu que ele mesmo seria o artista.
Entre as lições de Giotto de Rodrigo Naves e a solidão do apartamento onde desenhava, pintava e esculpia noite e dia, no afã estéril de encontrar a própria obra, passou a mostrar o que fazia a curadores e críticos conhecidos. Nada era original, diziam. Até que a crítica mais feroz lhe deu o insight. A sua “questão” era o discurso da arte, o percurso para dominá-lo, não a feitura tradicional de obras. O volume de Artnow, clássica antologia de artistas, calhava de estar ali, impassível, na estante. “Foi quando decidi me apropriar daquele discurso, dos padrões, do sistema da arte contido ali.” Trocou o projeto de mestrado em artes visuais sobre Mira Schendel pela confecção da enciclopédia. A Fapesp deu a bolsa; e a Funarte, o prêmio de dois editais. Na Amazon comprou dez volumes do gênero e passou meses a identificar os padrões do discurso artístico, elencados então em duas listas: uma com “obras curinga”, como a “mulher de burca, com interferências críticas”, e outra com 60 tipos possíveis de artista, a exemplo do “pintor de rabiscos que lembram desenhos infantis”, da “pintora brasileira de formas geométricas coloridas e com títulos estúpidos” e do “famoso artista que faz coisinhas”.
O resultado está na paródia dos textos, com suas “apropriações” e “ressignificações”. E na prática. Pois, para definir conceitos, ele mesmo fez todas as obras. “Num mesmo dia eu pintava uma tela a óleo e levava um pato de borracha para fotografar no Ibirapuera.” Assim chegou aos 50 artistas inventados, à primeira vista tão reais quanto os que se vendem por milhões de reais. Um deles, Keith Walker, em sua “tentativa dramática e quase sensacionalista de se comunicar com o público”, segundo a 47ª entrada da enciclopédia, traz a foto do pai de Moreschi (a quem dedica o trabalho) e um outdoor gigante onde se lê: “No. I don’t forgive you”. Qualquer insinuação biográfica é logo desfeita. “É arte.”
Para escrever sobre a obra e referendá-la como real, ele convidou ainda dez pensadores, interditando-lhe o direito de explicar a ficcionalidade do compêndio. Essa é, aliás, a ideia da exposição que estreia em março na sede da Funarte, em São Paulo. Suas obras dividirão o espaço com as dos artistas da enciclopédia. Quem decidirá seu valor, o que é obra “de verdade”, é o público.
Após anos de luta para dominar o discurso da arte, Moreschi foi aceito no sistema, justamente por ironizá-lo. Ao trabalhar na criação dessa obra em suspensão, porém, liberou o mesmo para dela se apropriar. Alguns críticos enxergaram em seu ART BOOK um manifesto contra a arte contemporânea. “Um disse que eu poder me passar por 50 artistas provava que a arte atual é um lixo.” Outros viram uma homenagem. E outros simplesmente não entenderam. Daí a aporia: após dilacerar o feitio da arte contemporânea, como seguir nela? “Ao terminar a enciclopédia, eu mesmo virei um clichê: o artista que inventa artistas para criticar o sistema.” Curioso não haver na enciclopédia um capítulo para si. Ainda.