Notícia

Jornal da USP

A difícil transferência do conhecimento (1 notícias)

Publicado em 25 de novembro de 2002

Por MIGUEL GLUGOSKI
A geração do conhecimento científico vai bem no Brasil, mas o mesmo não se pode dizer da geração de tecnologia. Se de 1975 a 2001 a participação do País na pesquisa mundial passou de 0.1 % para 1.4%, numa evolução de mil por cento, o registro de patentes, que é afinal a transformação do conhecimento em produtos, é modestíssimo: em 2000 não foi além de 100, contra 70 mil dos Estados Unidos, 3.500 da Coréia do Sul e oito vezes mais do Japão. Outro indicador de assimilação e propagação do conhecimento científico usado internacionalmente é a distribuição de cientistas e engenheiros no mercado de trabalho e aí também o Brasil fica para trás: 73% dessa mão-de-obra pensante está nas universidades, 16% em centros governamentais e apenas 11 % nas empresas. Comparando novamente, nos EUA trabalham em empresas 79% dos cientistas. São várias as explicações possíveis para o travamento da transferência da ciência dos laboratórios e da academia para a prática. Primeiro, porque, historicamente, a montagem do sistema de ciência e tecnologia e recente no Brasil, começou há cerca de sete décadas. Durante os primeiros 300 anos de história, a sociedade brasileira foi deixada à margem do desenvolvimento. O segundo motivo do atraso tecnológico liga-se à mentalidade de um segmento da elite brasileira que até pouco tempo considerava mais cômodo e mais barato importar tecnologia de países mais desenvolvidos a gerar a sua. Como lembra o pró-reitor de Pesquisa da USP, professor Luiz Nunes, o País precisa ficar atento para o falo de que a ciência sempre foi globalizada, mas a tecnologia não. Outra razão histórica está no lato de no Brasil o aparato de ciência e tecnologia estar sempre umbilicalmente ligado ao Estado e desligado da iniciativa privada. Esse quadro tende a se modificar porque, enquanto as universidades públicas criam novos quadros de pesquisadores e de doutores, fortalecendo a participação do Brasil na geração de conhecimento, os governos federal e estaduais vão tomando providências para estimular maior participação do setor empresarial e atender a regiões e bolsões humanos onde o progresso tecnológico encontra resistência para se instalar. Em alguns casos, iniciativas particulares têm dado resultados retumbantes. Foi assim com os agricultores gaúchos que, com ajuda técnica da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias), expandiram o cultivo da soja para Mato Grosso, melhoraram notavelmente a produtividade e transportam o produto pelo rio Madeira até o mar e daí para o exterior. Esse exemplo, lembrado pelo empresário e homem público Einar Alberto Kok, vem acompanhado da reflexão de que as universidades públicas nacionais precisam formar elites ou grupos altamente competentes para arbitrar questões de cuja solução muito depende o desenvolvimento do País. Por exemplo, a questão dos transgênicos, em que é urgente separar fatos de preconceitos e que está exigindo decisão rápida, não a critério das empresas multinacionais interessadas no negócio, mas de um grupo nacional de pesquisadores e cientistas. Já é hora de dizer quando e onde estas coisas foram pensadas e ditas. Foi no simpósio "Passado no presente: o futuro da ciência no Brasil", organizado pelo Centro Interunidade da Ciência da USP, com apoio das Pró-Reitorias de Cultura e Extensão e de Pesquisa, e realizado quarta-feira (20) na Sala do Conselho Universitário. O encontro teve o propósito de homenagear quatro antigos professores da USP que tiveram atuação marcante no campo da pesquisa e do desenvolvimento tecnológico: Tarcísio Damy de Souza Santos (90 anos), da área de Metalurgia dos Metais Não-Ferrosos, da Poli: Oscar Sala (NO anos), pioneiro da física de partículas no Brasil o responsável pelo projeto o construção do acelerador eletrostático Polletron em 1950: Warwick Kerr (80 anos), agrônomo, biólogo, docente do Departamento de Genética da Faculdade de Medicina do Ribeirão Preto e pesquisador de abelhas no Brasil e na África: e Júlio Roberto Kalinskv (70 anos), docente e ex-diretor da FAU, especializado em História da Arquitetura e Estética do Projeto. Para desenvolver o lema do simpósio e destacar o pioneirismo dos homenageados em seus campos de atuação, estiveram presentes o reitor Adolpho José Melfi, os pró-reitores Adilson Avansi de Abreu (Cultura e Extensão) e Luiz Nunes (Pesquisa); Ruy Altenlelder, secretário de Ciência e Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo do Estado de São Paulo; Carlos Vogl, presidente da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo); Edemar Cid Ferreira, presidente do Banco Santos; Einar Kok, conselheiro de Administração da Indústria Romi S/A; Flávio Fava de Moraes, ex-reitor e presidente do Seade, entre outros. Ao abrir o simpósio, o professor Molfi disse que, apesar de o sistema de ciência o tecnologia brasileiro não estar ainda consolidado, já representa fator de desenvolvimento social e econômico. E citou "ilhas de resistência" como a manifestada em recente relatório de um economista de banco mundial sugerindo ao governo brasileiro que transferisse as verbas das universidades, que respondem por 80% da pesquisa nacional, para o ensino básico. O atual sistema tecnológico, integrado por universidades, institutos de pesquisa, rede de laboratórios e órgãos de apoio financeiro, começou a se desenhar no final do século 19 e primeira metade do século 20, principalmente na Região Sudeste. Com o sucesso da agricultura paulista vieram os primeiros institutos de pesquisa ligados ao governo federal, como Osvaldo Cruz. Biológico. Butantan, Agronômico de Campinas e IPT. Mas o grande impulso mesmo foi a criação da Universidade em 1934, que estabeleceu um modelo de universidade pública moderna em que pesquisa e ensino são pilares indissociáveis. Em seguida foram sendo criados os mecanismos necessários para desenvolver a ciência e a tecnologia, como o federal CNPq e a paulista Fapesp. A esse salto tecnológico estão associados os cursos de pós-graduação, que ajudam o País a se colocar, hoje, em oitavo lugar na formação de doutores e a crescer proporcionalmente mais que o resto do mundo na produção de ciência. NÃO ESQUECER A REGIÃO Quase que retomando os temas do reitor, o professor Adilson Avansi insistiu na forte relação entre o aparelho científico e o Estado brasileiro que, no Segundo Reinado, tratou de organizar as Províncias. A de São Paulo logo se diferenciou das outras, graças às elites vindas da cafeicultura, que começaram a criar escolas profissionais e a se interessar pelo território. Assim nasceram a Comissão Geográfica e Geológica, o ponto de partida para um sistema de ciência e tecnologia nacional, e os três primeiros museus (Zoológico, Paulista e de Arqueologia e Etnologia). Essa é também a origem da USP, precedida pelos Cursos Jurídicos de Recife e de São Paulo, este logo incorporado à nova universidade, assim como a Escola Politécnica, Medicina, Odontologia, Farmácia e Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz. Na USP predominou o modelo alemão (Universidade de Berlim) que associava ensino e pesquisa e também se ligava ao Estado. Seguiram-se novas fases, primeiro a do conhecimento crítico, depois a do pensamento crítico que, segundo Avansi, está precisando agora de novo vigor para que siga os passos de mestres como Florestan Fernandes. Mensagem final do pró-reitor Avansi para a Universidade: valorizar a ciência universal, sem fronteiras, mas sem esquecer a ciência regional, fortalecendo a rede pública de ensino, socorrendo territórios deprimidos pelo atraso tecnológico, as populações excluídas e, entre outras ações, erradicar doenças pelas quais os laboratórios multinacionais não se interessam. Numa intervenção sintética, Einar Kok, depois de destacar a criatividade de famílias e empresas nacionais que conquistaram cerrados, implantaram sistemas de irrigação e deram impulso à agroindústria, disse que até pouco tempo os problemas do País se resolviam nos conflitos de interesse (ganha quem pode mais), mas agora se resolvem nos conflitos de conhecimento, levando em conta fatores como o bem-estar social e o meio ambiente. Nesse contexto, os cientistas têm a função de supridores de carências advindas dos cursos básicos e devem aluar como mediadores. Por isso é indispensável que conheçam profundamente aspectos da legislação e de outros campos do saber, como as leis trabalhistas, segurança do trabalho, a língua pátria e o inglês. O pró-reitor Luiz Nunes mostrou com um exemplo antigo que a ciência sempre foi globalizada, embora a tecnologia não. Disse que, há 400 anos. Isaac Newton usou em sua obra Principia Mathematica informação que lhe foi passada por um brasileiro. Valentim Escorel, a propósito de fenômenos que observou na costa do Espírito Santo. O cientista inglês usou os dados do brasileiro para estudos sobre gravitação. Luiz Nunes disse ainda que este ano a produção de pesquisa na Universidade crescerá de 10% a 15% em relação ao ano passado: em novembro os números já superam os de 2001.