Ma é um pensamento milenar japonês que até bem pouco tempo passou longe da lógica ocidental. Ouvir o silêncio. Perceber o salto de uma rã na lagoa, como sugere o célebre haicai do mestre Matsuo Bashô. Estar entre dois sonhos, dois caminhos. E contemplar o vazio como algo prenhe de possibilidades. Onde tudo pode acontecer.
É essa arte do cotidiano japonês, ou Ma, que a professora e historiadora de cultura japonesa Michiko Okano vem apresentando em seminários e congressos. Um trabalho que resultou em sua tese de doutorado, defendida em 2007 na PUC de São Paulo, tornando-se referência para dissertações e teses de mestrado e doutorado em Arte e Estética na USP, Universidade Federal de Londrina e Universidade Estadual do Ceará, entre outras.
As pesquisas de Michiko agora estão reunidas no livro Ma: Entre-espaço da arte e comunicação no Japão, da editora AnnaBlume, com apoio da Fapesp e Fundação Japão. “Este livro lança-se ao desafio de mostrar o Ma de uma perspectiva capaz de promover um diálogo entre o modo de pensamento japonês e o ocidental”, explica a autora. “Essa não é uma tarefa simples, uma vez que se trata de um elemento abstrato, cuja definição é bastante imprecisa. O Ma se apresenta como um modus operandi vivo no cotidiano dos japoneses e está sempre presente em todas as suas manifestações culturais, na arquitetura, nas artes plásticas, nos jardins, nos teatros, na música, na poesia, na língua e na comunicação interpessoal, como os gestos do cotidiano ou o modo de falar.”
Christine Greiner, especialista em Semiótica e pós-doutora pela Universidade de Tóquio, assina o prefácio. Explica que o Ma é uma ação do espaço, uma ação do tempo que provoca novas conexões sígnicas. “No Japão, parece uma grande bobagem escrever uma tese de doutorado sobre o tema. Afinal, não há nada a ser discutido, conceituado, analisado”, observa. “Em contrapartida, no Ocidente, o Ma tornou-se pouco a pouco um fetiche, um objeto de consumo que apresenta e, ao mesmo tempo, estigmatiza a cultura japonesa. Foi nesse fogo cruzado que a pesquisadora Michiko Okano mergulhou e eu tive a sorte de acompanhá-la como orientadora.”
Entre duas culturas – O livro de Michiko mostra o Ma como uma forma de descobrir o invisível da arte e, ao mesmo tempo, observar a cultura japonesa. O leitor logo percebe que não se trata de um produto de um Japão em ascensão. Mas uma referência importante para observar uma cultura de um país que caminha entre o tradicional e o moderno, a emoção e a razão.
Essa possibilidade de viver o duo com harmonia desperta interesse no Ocidente. “Fico impressionada com o interesse demonstrado por pessoas de várias localidades, inclusive de outros países. Creio que isso se deve ao modo inusitado de organização do pensamento japonês, muito diferente da tradicional lógica dualista e linear ocidental”, afirma a autora.
O Ma é difícil de traduzir em palavras. Mas pode ser percebido. “Os japoneses sabem o que é o Ma no momento em que o mestre de dança diz: ‘O Ma hoje está bom’. Ou seja, quando um dançarino ou ator não tem o Ma dentro de si, a sua arte não alcança uma plenitude.”
A autora explica que o Ma é um espaço vazio, não no sentido de vacuidade, mas prenhe de energia Ki. Importante lembrar que a pesquisadora apresentou o Ma um ano antes da polêmica Bienal do Vazio, quando se discutia o vazio, em seu sentido literal, nas artes. Porém, para os japoneses, o vazio é o início, o começo de muitas possibilidades.
Michiko apresenta o Ma em seus diversos significados e possibilidades. “A espacialidade Ma é um entre-espaço e pressupõe uma montagem, que pode se manifestar como intervalo, passagem, pausa, não ação, silêncio. Porém, o seu sentido é identificado em seu próprio ideograma. Ou seja, duas portinholas, através das quais, no seu entre-espaço, se avista o sol.”
O livro apresenta o Ma, em especial, na arquitetura. Resgata a sua primeira divulgação no Ocidente, através da exposição “Ma Espace-Temps du Japon”, organizada em Paris, em 1978, pelo arquiteto Isozaki Arata. Um evento que, segundo a autora, revelou essa característica tão particularmente nipônica para o resto do mundo, dando início a um processo de compreensão e de questionamento de outras culturas.
Michiko destaca o Ma também no cinema, fazendo uma leitura dos filmes dos diretores japoneses Ozu Yasujiro e Kitano Takeshi. Através do silêncio das cenas, Michiko estende a análise do Ma na dança, fotografia e pintura.
Brasil e Japão – O interesse em pesquisar o Ma fluiu da própria história da autora, da sua condição de imigrante. “Nasci no Japão e vim para o Brasil aos 8 anos. As crianças que imigram para cá sem terminar o ensino básico fundamental são chamadas de jun nissei. Essa expressão significa estar entre, sem pertencer, efetivamente, a nenhum dos dois países, mas a um espaço intermediário entre os dois”, conta Michiko. “Dessa vivência pessoal do espaço intervalar veio o interesse de estudar o Ma.”
Michiko nasceu em Hokkaido. Formou-se pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, lecionou língua japonesa na Aliança Cultural Brasil-Japão. É professora de História da Arte da Ásia da Universidade Federal de São Paulo e tem atuado como coorientadora nas pesquisas de pós-graduação sobre Arte e Cultura Japonesa na USP.
Ma: Entre-espaço da arte e comunicação no Japão, de Michiko Okano, Editora Annablume, 226 páginas, R$ 60,00.