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Jornal do Brasil

A arte de imitar (1 notícias)

Publicado em 04 de setembro de 1996

Por ARNALDO CARRILHO *
Quando Benjamin Franklin protegeu sua casa com um pára-raios ou Alto Santos-Dumont decolou com o 14-Bis, nem um nem outro pensaram em fazer dinheiro com suas invenções. O diplomata e pensador político que se tornou um dos pais fundadores dos EUA e o excêntrico dândi brasileiro também não recearam imitações dos óculos presos nas orelhas ou do relógio de pulso encomendado ao Cartier. Este, inclusive, jamais se avexou em utilizar a marca Santos, a qual muito rende até hoje ao negócio, mas nada aos herdeiros dò inventor do aeroplano, que seriam bilionários, se a Porsche também lhes pagasse o motor refrigerado a ar >dos fuscas nacional-socialistas e outros veículos "populares" da VW. Que dizer então dos hangares e suas portas corrediças (imitações das casas japonesas?), atribuídas ao patrício? A lista seria grande, convindo dela pinçar, talvez, o caso de Gutemberg, que no Ocidente imitou a técnica chinesa da imprensa, ou mesmo Henry Ford, que nunca se interessou em patentear sua linha de montagem. Mas Bill Gates, ao induzir a equipe de Al Gore às auto-estradas da comunicação, mediante o conúbio de invenções que não lhe pertencem (computador, telefone e televisão), veio demonstrar que é um animal de outra espécie: ele não quer saber dos benefícios sociais das inovações da Microsoft, porém utilizá-las com apenas o objetivo de concentrar mais poder e riqueza na sua corporação globalizante. Faz poucas décadas, a IBM, a General Motors e a Ford toleraram as imitações japonesas, inclusive para afastar as competidoras dos mercados leste-asiáticos de PCs e automóveis. Quando a Toshiba, a Toyota e a Nissan comprovaram que seus produtos equivaliam aos das norte-americanas em preço-qualidade, já nada mais havia a fazer, senão as pazes... ou a guerra! A demolição do Muro de Berlim em 1989 e o colapso da URSS em 1991-92 vieram revelar ao mundo que os bempensantes da razão dominadora do Ocidente não mais tinham como desprezar os asiáticos. O Japão aprendeu e ensinou às NEI's (novas economias industrializadas: Cingapura, Coréia do Sul, Formosa e Hong Kong) e às EAAD's (economias asiáticas de alto desempenho: Indonésia, Malásia e Tailândia) a utilizar os serviços comerciais e financeiros como alavancas de prosperidade. A China, a caminho do superpotenciamento, e agora a Índia, que já alçou vôo, indicam aos danados da terra que as reformas econômicas e suas aberturas ao comércio mundial não infringem de modo algum tradições e culturas, organizações sociais e políticas. Por trás disso tudo está a imitação das mecânicas do processo e a lição segundo a qual a pobreza pode ser incrivelmente transformada em vantagem comparativa, mediante mão-de-obra barata e mobilização do subemprego. A reação norte-americana e européia aos sucessos asiáticos expressa-se no protecionismo em torno de vasto campo de inovações. Seus responsáveis pespegam o livre comércio nos portões de entrada dos mais pobres, para melhor controle dos espaços domésticos de criatividade e invenção. Mais do que monopolização, melhor seria falar de uma feudalização tecnológica, o planeta dividido entre suseranos e piratas, sob os olhares perplexos dos servos da gleba. O acordo gattiano sobre direitos comerciais relacionados à propriedade intelectual (mais conhecido pela sigla inglesa Trips) é o cavalo-de-batalha dessa nova cruzada. Estabelece proteção de patentes por um período mínimo de 20 anos; aumenta a duração do período para semicondutores e chips de computador; institui medidas retaliatórias contra países imitadores; e joga o peso da prova contra o que chamam de violador de patentes nos ombros do órgão de solução de dissídios da OMC, por sinal caudatário dos "primos ricos". A entidade mundial de comércio, gerada no leito do sistema Gatt-Bretton Woods, nasceu para pôr em prática os princípios de livre-comércio preconizados pela Rodada Uruguai; mas o Trips está hoje acima do acordado em Marrakech, pois consolida a exclusividade do conhecimento avançado nas mãos da indústria high-tech dos EUA. O papa, em recente visita pastoral á Eslovênia, declarou-se seriamente preocupado com a ocupação do vácuo deixado pelo comunismo. Faz dois anos, ele já se manifestava a respeito, durante memorável entrevista concedida à folha turinesa La Stampa. O mundo inteiro está a par da decisiva contribuição de Karol Wojtyla para a derrocada dos regimes de força da URSS e satélites. O tal vácuo não deveria ser ocupado por um capitalismo de aluguel, sobretudo, porque assim se impede o processo natural de universalização do conhecimento tecnológico. A pirataria não pode ser confundida com o direito de imitar, verbo que também difere de copiar. O Trips tende a tornar-se uma camisa-de-força, não um instrumento regulador: eis uma questão internacional que a todos interessa. Embaixador em Bangcoc e também já designado para Phnom Penh e Yangon